sábado, 30 de dezembro de 2017

PROJETO DE LEITURA PARA 2018


Divulgo aqui minha lista de livros que pretendo ler em 2018. Como toda lista desse tipo, trata-se de um projeto de leitura que pretendo cumprir. Espero, evidentemente, poder ler ainda outros títulos. Mas, seguindo as dicas da booktuber Tatiana Feltrin, escolhi apenas 12 títulos, de modo a corresponder ao número de meses do ano. Os títulos não foram elencados na ordem em que pretendo lê-los, mas na ordem em que me ocorreram.

1 – O morro dos ventos uivantes (Emily Brontë) – Já li muitas resenhas elogiosas ao romance de Emily Brontë, que despertaram a minha curiosidade. Há muito que concebia planos de lê-lo.

2 – A grande fome de Mao (Frank Dikötter) – Casualmente, em visita à livraria Cooperativa Cultural, no campus da UFRN, deparei-me com um exemplar deste livro. Li a contracapa e fiquei profundamente incomodado com o que li. Dei mais uma folheada e resolvi adquiri-lo. Tenho grande interesse, provocado por esse tipo de incômodo, em ler sobre tiranos e seu reinado de terror. O livro trata do Grande Salto Adiante, um programa catastrófico, dirigido pelo ditador comunista Mao-Tsé-Tung entre 1958 e 1962, que levou 45 milhões de chineses a passarem fome, submeterem-se a trabalhos forçados e serem espancados até à morte.

3 – Reflexões sobre a revolução em França (Edmund Burke) – Desde que tomei conhecimento da existência do livro de Edmund Burke, tive intenção de lê-lo. Burke foi um teórico conservador e um importante crítico da Revolução Francesa. Em seu livro há a denúncia do perigo da ideologia revolucionária.

4 – Os irmãos Karamazov (Dostoiévski) – Meu interesse em ler o livro vem da recorrente menção da fala de um dos personagens: “Se Deus não existe, tudo é permitido”.

5 – O leopardo (Lampedusa) – Há muito tenho este livro na minha estante. A sugestão da Youtuber Ana Caroline Campagnolo contou muito para a escolha.

6 – O segundo sexo (Simone de Beauvoir) – Tenho pretensão de me apropriar da teoria feminista, de modo a poder dialogar com a crítica conservadora a essa teoria. Para isso, a leitura dessa obra é fundamental.

7 – Sexo privilegiado: o mito da fragilidade feminina (Martin Van Creveld) – Mais um livro cujo interesse foi despertado por um vídeo da professora Ana Caroline Campagnolo. Trata-se de uma obra que pretende desconstruir o mito de que a sociedade privilegia o homem na medida mesma em que oprime as mulheres. Seria mesmo um mito? Bem, pretendo descobrir.

8 – Hitler (Ian Kershaw) – Gosto de biografias e me interesso por entender a gênese da tirania. Acredito que vou gostar muito desse livro, considerado a biografia definitiva do Führer.

9 – Confissões (Santo Agostinho) – Comecei a ler a autobiografia da conversão de Santo Agostinho (não sei se o livro trata de algo mais), no entanto, devido à falta de tempo, acabei por largar a leitura no meio. Espero poder ler esse clássico em 2018.

10 – A ladeira da memória (José Geraldo Vieira) – Indicação da Ana Caroline Campagnolo, que fez rasgados elogios ao autor. Conseguiu despertar minha curiosidade.

11 – Inteligência humilhada (Jonas Madureira) – Outra indicação da Ana, mas já havia ouvido falar dessa obra, que trata, segundo li em resenha, da superação da velha dicotomia razão e fé, para defender “uma razão que ora e uma fé que pensa”.

12 – Eu não sou cachorro, não (Paulo César de Araújo) – Desde que li Roberto Carlos em detalhes, interessou-me ler esta outra obra do Paulo César. Claro, o que contou mais ainda foi o meu propósito de aprofundar-me na história da música popular brasileira.          


terça-feira, 17 de outubro de 2017

O livro de que gosto é ilegal, imoral ou engorda?

Enfim, posso dizer que li um livro proibido. Já faz algumas semanas que concluí a leitura de Roberto Carlos em detalhes, biografia do proclamado rei da música popular brasileira, de autoria do jornalista Paulo Cesar de Araújo, lançado em 2006 pela Editora Planeta. A biografia viria a ser censurada pelo próprio biografado apenas um ano após o seu lançamento. No entanto, ainda que o livro tenha sido recolhido das lojas em 2007, em virtude de uma decisão judicial, uma versão em PDF passou a circular amplamente na internet, o que possibilitou a qualquer um o acesso à obra. No meu caso, que não gosto de ler ebooks no formato PDF, tive a oportunidade de ler as 502 páginas da interdita biografia de Roberto Carlos em uma versão .mobi, o que favoreceu uma leitura mais prazerosa no Kindle.

Quando leio uma biografia, minha expectativa, que não pode ser muito diferente da de outros leitores de biografias, é me deparar com uma narrativa interessante, que, de certo modo, forneça-me elementos para melhor compreender o personagem biografado e a sua obra. Nesse sentido, pode-se dizer que a biografia de Roberto Carlos é bem-sucedida. Como qualquer livro do gênero, em Roberto Carlos em detalhes há a narrativa de toda a trajetória do rei: seu nascimento, o acidente na infância, o sucesso local em uma rádio de Cachoeiro de Itapemirim, a busca pelo sucesso no Rio de Janeiro, a sua “adoção” por Carlos Imperial, a participação, com Tim Maia, no grupo The Sputniks, a imitação de Elvis Presley e, em seguida, de João Gilberto, os primeiros compactos, o primeiro disco, os primeiros fracassos; a chegada na gravadora CBS, o sucesso de “Parei na contramão”, a importante condução de sua produção discográfica por Evandro Ribeiro, a vitória no festival San Remo, o estouro de “Quero que vá tudo pro inferno”, a amizade com Erasmo Carlos, com quem construiria uma profícua parceria musical, etc. etc. etc. A história do rei está ricamente relatada no livro, em detalhes, como promete o título.

No entanto, o livro do Paulo Cesar de Araújo é muito mais do que isso. O que mais me despertou o interesse foi o fato de o autor oferecer ao leitor não apenas o feijão-com-arroz de toda biografia, mas também interessantes análises, como a de movimentos musicais como a bossa nova, a jovem guarda e a tropicália. O pessoal da bossa nova, por exemplo, é mostrado como um grupo extremamente fechado, ao qual Roberto Carlos não tinha direito de se associar. Não obstante isso, a incipiente carreira do autor de “Detalhes” era acompanhada com certo interesse por artistas como Silvinha Telles e o próprio João Gilberto. O livro me fez ainda rever algumas ideias que tinha a respeito do pioneirismo tropicalista de Caetano Veloso e companhia no enfrentamento do tradicionalismo estético que não permitia o uso de instrumentos musicais como a guitarra elétrica, vista como símbolo do imperialismo ianque. A Tropicália é, em grande medida, influenciada por ousadias estéticas e comportamentais de artistas como Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia, que enfrentaram na época forte preconceito, tanto de uma direita conservadora, zelosa pela defesa da moral e dos bons costumes, quanto de uma engajada esquerda, que os acusava de alienados e alienantes.

Há muito mais o que dizer da obra. Paulo Cesar fez um trabalho primoroso e – não há dúvida – bastante respeitoso para com o rei, de modo que me pareceu ainda mais incompreensível a atitude de Roberto Carlos em censurá-lo. A intervenção do rei só serviu para acender o debate sobre biografias não autorizadas. Felizmente, o recolhimento da obra não nos impediu o acesso à agradável leitura da interessante narrativa de um dos mais importantes personagens da história da música brasileira.  

sábado, 22 de julho de 2017

Vamos tirar o Boldrin da gaveta!

Como empresas que são, emissoras de TV naturalmente buscam o lucro e, por essa razão, preocupam-se mais em levar ao ar produtos de fácil consumo do que em oferecer conteúdo relevante e de qualidade aos seus espectadores. Essa tendência ao fácil, consumível e descartável é cada vez mais evidente na programação dos principais canais da TV aberta, que, no geral, veiculam jornalismo sensacionalista, programas de auditório popularescos, novelas previsíveis e apelativas e músicas-chiclete de forte apelo comercial. Devido a isso, hoje eu quase não vejo a TV aberta, sobretudo havendo alternativas como o Youtube e a Netflix. Mas há um programa que me leva a parar diante da telona: o Sr. Brasil, da TV Cultura, comandado pelo caboclo Rolando Boldrin, sem dúvida um brasileiro apaixonado por seu país. Se já tinha um profundo respeito, admiração e carinho por esse ícone da música caipira, esses sentimentos só se intensificaram depois da leitura de A História de Rolando Boldrin, de Ricardo Taira e Willian Corrêa, publicado pela Editora Contexto.

O livro conta a trajetória do cidadão de São Joaquim da Barra que, ainda criança, revelava um pendor artístico. Em contrapartida, nenhuma inclinação demonstrava pelo ofício do pai, mecânico de automóveis. Boldrin foi o Boy, da dupla caipira Boy e Formiga, formada com o seu irmão, mas, quando a dupla se desfez, teve de aprender um ofício e arranjar emprego. Mas, perseverante, não demoraria para largar tudo e correr atrás do seu sonho. Praticamente sem dinheiro algum, mudou-se para São Paulo, onde dormiu na rua, trabalhou em uma fábrica de calçados, participou de diversos testes no rádio e na TV, etc. A história é fantástica e inspiradora, mas não será contada aqui. A leitura do livro é indispensável. O que quero deixar registrado são minhas impressões sobre a pessoa e o artista Rolando Boldrin. Boldrin não é apenas um artista de quem sou fã. Ele é um personagem importante da nossa cultura, que, de forma muito convicta, abraçou a missão de mostrar o Brasil aos brasileiros, de tirá-lo da gaveta, de mostrar que o Brasil não é só litoral e não é só samba. Em vez disso, Boldrin tem revelado que nosso país é riquíssimo, apesar da ingerência dos políticos e, por essa razão, convida-nos a “creditar” no Brasil, no Sr. Brasil.

Boldrin sempre amou o povo e a cultura brasileira. No início da carreira, quando fazia apresentações em cinemas, antes da exibição dos filmes, só subia ao palco se o filme fosse nacional. Quando a TV Globo apostou no seu programa Som Brasil, teve de aceitar suas condições: não poderia haver qualquer interferência. Nele seriam mostrados principalmente artistas desconhecidos, mas de grande qualidade, não havendo qualquer espaço para a música de alto consumo. Para isso, teve inclusive de “peitar” o diretor da Som Livre, que queria impor a participação de seus artistas no programa. Mas Boldrin não faz concessões: até hoje seu amigo Sérgio Reis não subiu ao palco do Sr. Brasil porque não desfaz de sua indumentária de cowboy texano. À semelhança de Ariano Suassuna, Boldrin não vê com bons olhos a descaracterização da cultura nacional, nosso desejo de nos parecermos com o americano, rejeitando nossas próprias tradições.

Além da perseverança na perseguição de seus objetivos, da defesa inabalável de suas convicções e do talento demonstrado em todas as suas investidas no mundo artístico, Rolando Boldrin é, acima de tudo, uma pessoa humilde e uma alma extremamente bondosa, dada a grandes gestos de generosidade. Mas para ter uma dimensão de tudo isso é necessário “comer” as 224 páginas de sua belíssima biografia. Bom apetite.

Sérgio Santos da Silva

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Elas por ela: o Feminismo na visão de Adichie

Depois de entrar em contato com tantas críticas ao Feminismo e, mas propriamente, ao movimento feminista, a maioria delas provindas de setores conservadores e liberais, meu interesse por saber quem de fato são as feministas, o que pensam e como agem foi despertado. Como sou, na maior parte das vezes, bastante desconfiado quanto aos discursos dos críticos, parto do pressuposto de que a literatura crítica não é, a priori, digna de confiança. Isso porque não raro o crítico incorre, de forma intencional ou não, em falsificações do objeto criticado. É o que pude verificar com determinadas críticas feitas ao educador Paulo Freire. Tenho certeza que poucos discordariam de quem condenasse Paulo Freire por este proscrever o ensino da língua padrão às classes populares sob a alegação insustentável de que aprender essa variante linguística significaria se submeter à opressão de uma elite privilegiada. Mas o problema dessa crítica reside no fato de que Freire nunca sequer sugeriu tal defesa. Ressabiado com essa experiência com o discurso de críticos “de ouvido”, fiz a opção de compreender as ideias e movimentos por meio de seus defensores, em vez de seus detratores, que tendem sempre a reducionismos ou a exageros, sendo ambos formas de falsear a realidade. No caso do Feminismo, minha opção é tomar conhecimento de suas propostas a partir do discurso das próprias feministas, e não de declarados inimigos do Feminismo. Não foi por outro motivo que li o discurso de 36 páginas da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, publicada pela Companhia das Letras sob o título Sejamos todos feministas.

A autora já inicia seu discurso tratando do estigma que a palavra feminista vem carregando ao longo do tempo. “Acusada” de ser feminista por seu melhor amigo, Adichie não tinha sequer ideia do que isso significava, mas compreendeu imediatamente que chamar alguém de feminista não era bem um elogio. De acordo com essa visão, a feminista “odeia os homens, odeia sutiã, odeia a cultura africana, acha que as mulheres devem mandar nos homens; ela não se pinta, não se depila, está sempre zangada, não tem senso de humor, não usa desodorante”. Adichie desmistifica todo esse estereótipo da mulher feminista, ao mesmo tempo em que denuncia o que lhe parece óbvio, apesar de ser invisível a muitos: mulheres são tratadas como seres humanos menos importantes que os homens. E ela deixa isso claro por meio de narrativas simples e bem ilustrativas de como o nosso cotidiano é repleto de ocorrências de discriminação e violência contra as mulheres.

O livrinho (refiro-me à sua extensão) surpreendeu-me de forma bastante positiva, pois nele não são ignoradas muitas das conquistas feitas no sentido de construir uma situação de maior igualdade entre os gêneros, embora nele também se dê visibilidade ao quanto ainda precisamos avançar. Adichie também faz outras afirmações em sentido contrário ao da crítica de muitos conservadores, que, por exemplo, afirmam que o Feminismo nega o conhecimento da Biologia. A autora afirma: “Homens e mulheres são diferentes. Temos hormônios em quantidades diferentes, órgãos sexuais diferentes e atributos biológicos diferentes – as mulheres podem ter filhos, os homens não. Os homens têm mais testosterona e em geral são fisicamente mais fortes que as mulheres”. Mas também dispara: “... os homens governam o mundo. Isso fazia sentido há mil anos. Os seres humanos viviam num mundo onde a força física era o atributo mais importante para a sobrevivência;  quanto mais forte a pessoa, mais chances ela tinha de liderar. E os homens, de uma maneira geral, são fisicamente mais fortes. Hoje, vivemos num mundo completamente diferente. A pessoa mais qualificada para liderar não é a pessoa fisicamente mais forte. É a pessoa mais inteligente, a mais culta, a mais criativa, a mais inovadora. E não existem hormônios para esses atributos.”

Percebemos logo que Adichie não profere um discurso sexista ou misândrico, como muitos críticos poderiam esperar. Em vez disso, é ardorosa defensora da igualdade entre os gêneros. Ela é feminista, mas deixa claro que o movimento feminista não é uma voz uníssona, que não há um só Feminismo, mas feminismos. Entender isso é importante para rejeitarmos qualquer caracterização limitadora do Feminismo, no geral, reduzidas a caricaturas. Depois de ler o livro de Adichie, ouso dizer que me identifico com a causa feminista. Por que não dizer que sou um feminista?


Sérgio Santos da Silva

terça-feira, 11 de julho de 2017

Esses nem de longe eram normais

Voltando, após alguns anos, às minhas leituras sobre a história da música popular brasileira, concluo o livro A vida louca da MPB, de Ismael Caneppele. O volume, de 272 páginas, traça perfis biográficos de 17 importantes nomes da nossa música, os quais têm em comum a clareza com que se empenham em conferir à sua produção artística suas próprias digitais, bem como a ousadia de viver sua vida e carreira sem capitular a interesses alheios aos seus, ainda que sejam, naquela ocasião, os da poderosa indústria fonográfica. Todos esses artistas protagonizaram narrativas marcadas pelo excesso, que, no mais das vezes, traduziam-se em atitudes transgressoras que desafiavam o conservadorismo da sociedade, as leis do Estado, os interesses do mercado de discos, os críticos de plantão e até mesmo o público que consumia suas músicas e iam aos seus shows. Todos eles morreram jovens, mas, apesar disso, produziram uma arte tão intensa, verdadeira e original, que acabaram se tornando imortais. São eles: Carmem Miranda, Noel Rosa, Mário Reis, Orlando Silva, Dalva de Oliveira, Nelson Cavaquinho, Vinicius de Moraes, Maysa, Wilson Simonal, Tim Maia, Raul Seixas, Sérgio Sampaio, Itamar Assumpção, Júlio Barroso, Cazuza, Renato Russo e Cássia Eller.

É importante que não se confunda o livro de Caneppele com uma biografia. Biografia é obra de maior fôlego e exige bem mais empenho e responsabilidade de seu autor, tanto no que diz respeito à pesquisa e tratamento do material pesquisado, quanto ao modo como se pretende abordar a história de vida da personagem escolhida para ser biografada. Em A vida louca da MPB, cada capítulo traz uma boa síntese do que foi a vida e obra de um artista de nossa música, sem qualquer aspiração à completude. Para quem tiver interesse em compreender melhor as personalidades que constam no livro, no final há a indicação da bibliografia consultada pelo autor. No meu caso, interessa-me ler toda a bibliografia citada, mas, por ora, o livro de Caneppele é uma boa leitura introdutória.

Sérgio Santos da Silva


Biografia feia, mas um belo espelho

Abuso de clichês, trocadilhos infames, informalidade excessiva e outros problemas de estilo. Essas são características perceptíveis no livro Caetano – uma biografia, de autoria de Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco, lançado em maio deste ano pelo selo Seoman. O próprio biografado acabaria revelando seu desagrado pela biografia, não em virtude de alguma inconfidência sobre fatos de sua vida, mas devido ao seu “baixo valor literário”. Apesar de concordar com o cantor e compositor nesse ponto, considero que a biografia escrita pela dupla Drummond e Nolasco oferece uma grande contribuição para a compreensão do multiartista Caetano Veloso.

Nas 544 páginas do livro, acompanhamos toda a trajetória do autor de Alegria, alegria, desde sua infância em Santo Amaro da Purificação até a sua maturidade artística, já com uma carreira nacional e internacional consolidada. Para que se tenha ideia da abrangência temporal da biografia, até mesmo a apresentação de Caetano ao lado de Gilberto Gil e Anitta na abertura das olímpiadas de 2016 é mencionada. Ou seja, um evento que remete a menos de 1 ano atrás. É justamente esse relato minucioso que torna a leitura dessa obra fundamental para quem deseja uma maior aproximação com o universo de Caetano Veloso. Nesse sentido, não há dúvidas de que a biografia é fruto de um grande esforço de pesquisa, o que fica claro diante do grande número de entrevistas feitas, da bibliografia utilizada, das notícias e reportagens consultadas, da colaboração de amigos e parentes, além das informações colhidas com o próprio Caetano, que tomou conhecimento da empreitada no final da década de 1990. Trata-se, portanto, de um registro muito bem documentado da vida e obra de um dos maiores artistas brasileiros.

Por essa razão, sua leitura é enriquecedora, uma vez que muitas informações ali contidas lançam luz sobre a origem e significado de diversas canções, o contexto da criação, as fontes de inspiração, as referências artísticas, a concepção por trás de um dado trabalho, etc. Além disso, tomamos conhecimento do desenhista, ator, cineasta e escritor Caetano Veloso. Suas investidas em outras expressões artísticas são pouco conhecidas, e, por isso mesmo, fornecem-nos importantes elementos para entendermos melhor de que matéria é feito o cantor e compositor baiano. Da mesma forma, podemos entendê-lo melhor por meio do conhecimento de como se deu sua aproximação com determinados artistas e correntes artísticas, e de que forma sua própria arte era recepcionada pela crítica e pelo público.

Bem, as informações são abundantes e o livro é um catatau, mas sua leitura, apesar dos referidos problemas de estilo, flui naturalmente, de sorte que percorremos as suas mais de quinhentas páginas sem nos darmos conta disso. Entendo, depois de ter atingido o ponto final de Caetano – uma biografia, que o livro não me proporcionou nenhum prazer estético, no entanto, para quem se interessa, como eu, pela história da música popular brasileira, certamente é muito melhor lê-lo do que não lê-lo.

Sérgio Santos da Silva


quarta-feira, 28 de junho de 2017

Um livro para críticos de Paulo Freire

Se a internet favoreceu certa experiência democrática, possibilitando que os indivíduos assumam sua voz, expressando livremente suas opiniões – o que certamente vai ao encontro da ideia de autonomia do sujeito defendida pelo educador Paulo Freire –, é também verdade que permitir a livre expressão das ideias implica certos riscos, que, obviamente, não podemos deixar de correr por medo da liberdade. Freire jamais foi a favor de censura ou da atitude arrogante de quem se coloca na condição de quem tudo sabe e, portanto, nada teria a aprender com os ignorantes, ou seja, com os que nada saberiam. Em vez disso, ele afirmava que o conhecimento do senso comum deve ser valorizado, sendo essa uma condição necessária para sua superação. É evidente que o autor de Pedagogia do Oprimido escrevia sobre Educação quando dizia essas coisas e pensava a liberdade no contexto da sala de aula. Ou seja, o aluno, para Freire, deveria poder assumir sua voz e não se converter apenas em um sujeito passivo, um não-sujeito ou mero objeto. De qualquer forma, é possível pensarmos a liberdade de expressão em um contexto mais amplo, de certo modo, a partir da perspectiva freiriana. Nesse sentido, todos devem ser livres para expressar sua própria leitura do mundo e da palavra, mas o dito, embora não deva ser ignorado, não deve igualmente ser alçado à condição de verdade só porque dito. Isso porque nossas opiniões podem revelar equívocos de interpretação, imprecisões típicas do senso comum e outras falsificações da realidade. Precisamos trabalhar com elas, no entanto, para percebermos quando nos aproximamos e quando nos distanciamos de um conhecimento mais preciso do objeto de nosso comentário. Nesse caso, a melhor estratégia para superar a mera opinião em direção a um conhecimento válido é levando-a em consideração, é operando a partir dela. O interessante é constatarmos que as opiniões sobre a própria obra de Freire podem nos fornecer a possibilidade de verificarmos isso na prática e de percebermos os riscos e oportunidades implicados na assunção da liberdade de expressão pelo sujeito. Isso porque nunca se escreveu e se disse tanta bobagem sobre Paulo Freire quanto neste tempo de onipresença e quase onisciência das redes sociais, mas igualmente nunca houve melhor oportunidade de divulgação das ideias que de fato nosso patrono da Educação defendeu ao longo de sua vida e em sua extensa obra. Tudo isso me veio à mente quando terminei de ler as 192 páginas de seu Professora sim; tia, não – cartas a quem ousa ensinar, publicado pela editora Paz e Terra.

À primeira vista, o livro trataria tão-somente da oposição “professora”, uma categoria profissional x “tia”, uma função parental. Embora esse seja o fio condutor do livro, nele Freire discute alguns aspectos de sua obra que têm sido alvo de críticas infundadas de leitores apressados. Nas linhas seguintes falarei sobre duas dessas críticas para que se tenha ideia da relevância desta importante obra.

Por exemplo, no capítulo intitulado “Identidade cultural e educação”, Freire se dedica a defender a identidade cultural dos educandos e o necessário respeito que devemos ter por ela em nossa prática educativa. O professor é convidado a tomar conhecimento do “que se passa no mundo das crianças com que trabalham. O universo de seus sonhos, a linguagem com se defendem, manhosamente, da agressividade de seu mundo. O que sabem e como sabem independentemente da escola”. Notadamente esse convite a conhecer e respeitar o mundo dessas crianças tem sido entendido pelos críticos “de ouvido” como uma interdição do professor ao cumprimento de seu papel de ensinar, de contradizer, ainda que minimamente, a verdade do aluno. De acordo com essas pessoas, Freire seria, por exemplo, contra o ensino da língua padrão culta porque ela desrespeitaria a variante falada pelo aluno, sendo, assim, uma forma de opressão. No entanto, o autor não poderia ser mais claro, quando diz, nesse mesmo capítulo:

“Jamais disse ou sequer sugeri que as crianças das classes populares não devessem aprender o chamado ‘padrão culto’ da língua portuguesa do Brasil, como às vezes se afirma. O que tenho dito é que os problemas de linguagem envolvem sempre questões ideológicas e, com elas, questões de poder. Por exemplo, se há um ‘padrão culto’ é porque há outro considerado inculto. Quem perfilou o inculto como tal?”

Observe-se que Freire acredita ser necessário que o aluno aprenda o chamado padrão culto da língua, mas, obviamente, não porque tal padrão linguístico se constitua uma variante intrinsecamente melhor do que as variantes linguísticas populares, mas porque tal aprendizado – ele esclarece na sequência – é necessário para que se “diminuam as desvantagens na luta pela vida” e para que se ganhe “um instrumento fundamental para a briga necessária contra as injustiças e as discriminações de que são alvo”. É possível que um crítico avesso aos discursos progressistas discorde dos motivos por que Freire vê como necessário o ensino-aprendizagem da língua portuguesa padrão, mas não poderá afirmar que ele é contrário ao ensino desse tipo de conteúdo na escola. Ademais, é preciso que se diga que as declarações de Freire tanto sobre o padrão culto quanto sobre as variantes populares da língua estão corretas do ponto de vista científico. Apesar de ir de encontro ao senso comum – e frequentemente é isso o que a Ciência faz –, não há dúvidas de que atribuir determinado valor a uma variante linguística deve-se a um fenômeno estritamente social e não a alguma razão natural. Não há quaisquer características inerentes a uma determinada variante que a torne naturalmente mais correta que as demais, obrigando-nos a prestigiá-la em detrimento das outras. O assunto é denso e não cabe nessa breve resenha, mas recomendo a quem tiver interesse no aprofundamento dessa discussão a leitura das várias publicações de respeitados linguistas como Carlos Alberto Faraco, Carlos Franchi, Luiz Antonio Marcuschi ou Marcos Bagno.

Outro tema interessante abordado em “Professora sim; tia, não” é a defesa à liberdade em oposição ao autoritarismo e à licenciosidade. Muitos pretensos críticos da obra de Freire acusam-no de ter retirado a autoridade do professor e incentivado a rebeldia dos alunos. Nada mais longe da verdade. O esclarecimento desse ponto pode ser vislumbrado em obras anteriores como “Pedagogia da autonomia” e “Pedagogia da esperança”, mas aqui Freire vê mais uma oportunidade para ratificar seu pensamento. Leia:

“A educadora democrática, só por ser democrática, não pode assumir sozinha a vida de sua classe, não pode, em nome da democracia, fugir à sua responsabilidade de tomar decisões. O que não pode é ser arbitrária nas decisões que toma. O testemunho, enquanto autoridade de não assumir o seu dever, deixando-se tombar na licenciosidade é certamente mais funesto do que o de extrapolar os limites de sua autoridade.”

Nada mais esclarecedor. Freire, reiteradamente em sua obra – e esse livro não foge à regra –, opõe-se ao autoritarismo do professor na sua atuação em sala de aula, mas defende que esse mesmo professor assuma sua autoridade. Ele não deve agir como se fosse um deus todo-poderoso (a expressão “todo poderoso” aparece no livro), cujas decisões são inquestionáveis, mas não deve, da mesma forma, permitir o vale-tudo em sala, a falta de disciplina, a atitude licenciosa. Para ele, a licenciosidade é algo ainda pior que o próprio autoritarismo. Algo similar é dito em “Pedagogia da esperança”.

Recomendo a leitura integral do livro para quem pretende entender o pensamento de Freire e, talvez, desfazer certos equívocos produzidos por leituras parciais e superficiais de suas obras. Recomendo sobretudo para quem se vê em um lado antagônico do autor. Na verdade, esse convite o próprio Freire faz:

“[...] é sempre bom ler textos que defendem posições políticas diametralmente opostas às nossas. Em primeiro lugar, ao fazê-lo, vamos aprendendo a ser menos sectários, mais radicais, mais abertos; em segundo lugar, terminamos por descobrir que aprendemos também não apenas com o diferente de nós mas até com o nosso antagônico”.

Por fim, só posso dizer que tenho aprendido a ser menos sectário com Freire e certamente tenho aprendido muito com os meus antagônicos. Foram eles que me levaram à leitura dos livros do mais importante autor de Educação do nosso país.

Sérgio Santos da Silva

domingo, 26 de março de 2017

A esquerda não é isso, meu caro!


Algumas pessoas não compreendem minha luta por ideais de esquerda. Isso porque ainda não entenderam que a esquerda não passa de ideais. Ideais que, em nome da clareza e da objetividade, declaro: jamais se concretizarão de forma plena. Explico-me: historicamente quando a esquerda surgiu, no século XVIII, na França, tratava-se de um ideal que se opunha à exploração econômica perpetrada pela nobreza e pelo clero, representados, respectivamente, pelo Primeiro e Segundo Estados, contra o restante da população, que compunha o Terceiro Estado. Ou seja, a esquerda não era nada menos que a luta do Terceiro Estado por ideais de justiça, de igualdade no pagamento de tributos e de acesso às condições mínimas de vida, o que incluía o sagrado direito ao pão de cada dia. Foi esse ideal que esteve presente na divisão dos assentos na Assembleia dos Estados Gerais, que, afinal, deu origem a essa oposição esquerda/ direita. Enquanto a direita representava a conservação do status quo, ou seja, dos privilégios de uma elite política e econômica, a esquerda representava a ruptura com o Antigo Regime e a inclusão das pessoas em uma nova ordem, com mais igualdade e justiça. É preciso que se diga que, nessa época, já havia uma incipiente elite liberal que, usando do discurso de esquerda, ascendeu ao poder e acabou por somar o poder político ao poder econômico que já detinha. Nesse momento, entenda-se, a dita esquerda já não era tão esquerda assim. Ou seja: os liberais passaram a tratar de seus próprios interesses, ao passo que relegaram o povo a segundo plano. Nesse sentido, só parte dos ideais de esquerda se concretizou. Em vez de uma sociedade justa e igualitária, a França assistiu ao Regime de Terror de Robespierre. Estava nascendo, assim, uma nova direita, que apenas se travestiu de esquerda para impor seus interesses particulares.

Quando ocorreu a revolução comunista na Rússia no início do século XX, também se verificou semelhante situação vivida pelos revolucionários franceses. Na esteira do descaso e da violência perpetradas pelo czar contra seu próprio povo, surgiu de novo uma esquerda que se opunha à manutenção dos privilégios de uma elite política que se lixava para a população. Mas, uma vez no poder, primeiros os mencheviques, depois os bolcheviques traíram os ideais de esquerda. Os mencheviques, por manterem a Rússia na Primeira Guerra, acentuando os problemas econômicos do país e a miséria da população; os bolcheviques, por instaurarem uma ditadura sanguinária, sob a liderança inicial de Lênin, seguido por Stálin. Sob a ditadura de Stálin, surgiu uma elite estatal e autoritária que em nada lembrava os ideais de esquerda que motivaram a Revolução. E assim foi na China, e assim foi no Camboja, em Cuba, etc. Em todo lugar nascia uma nova direita que intitulava a si mesma de esquerda.

Quando afirmo e reafirmo minha crença nos ideais de esquerda, portanto, remeto-me à ideia original de esquerda e não ao que comumente se entende por esquerda. A esquerda é um ideal de igualdade, de oposição a quaisquer privilégios, de qualquer natureza. É a luta contra a exploração do homem sobre o homem. Quando uma pessoa se diz de esquerda e defende ou faz o oposto disso é porque mente. Ele não é de esquerda, mas apenas faz uso de discursos de esquerda. E se o discurso e a prática não forem, igualmente, de esquerda, não tenha dúvida: estamos diante de mentirosos e hipócritas.

Por não entenderem isso é que me fazem muitas acusações contra a esquerda, e a verdade é que estão falando de tudo, menos da esquerda. Por exemplo, afirmam que na China o trabalhador é convertido em mão-de-obra barata e explorado até à exaustão. Mas quem disse que os ideais de esquerda têm qualquer relação com a China? Se um homem é explorado por outro homem, não importa o que digam a você, não estamos diante da esquerda, mas de uma direita camuflada, dissimulada, que até mesmo se acredita de esquerda, mas que nega isso o tempo inteiro por meio de palavras e ações. Isso mesmo que estejamos falando de um país ou de um partido comunista. Na Rússia – dizem-me –, homossexuais são condenados à morte. Quer dizer, cara pálida, que um russo heterossexual tem privilégios em relação a um russo homossexual? Quer prova maior de que a sociedade russa cuspiu nos ideais de esquerda? Isso não é esquerda, meu caro.

Entenda de uma vez por todas: eu não luto nem jamais vou lutar por ideais de esquerda tendo como parâmetro a realidade de qualquer país do mundo. A esquerda não é o mundo como ele é, mas como ele deve ser. E o mundo que deve ser não é o mundo como eu quero que seja, e que, querendo-o, procuro impô-lo à força. É, antes, um mundo em que se reconheça uma verdade básica: nenhum homem é superior a qualquer outro homem, e isso porque somos iguais tanto no nascimento quanto na morte. Essa é uma verdade tão evidente que posso afirmar com toda segurança: ninguém é capaz de levantar um só argumento válido para provar o contrário, isto é, a superioridade de um homem em relação ao outro. Simplesmente não existem razões para a defesa dessa imoralidade.

Talvez você me considere um ingênuo ou um tolo por pensar essas coisas. Está enganado quanto ao primeiro, pelo menos. Não tenho ingenuidade alguma. Os ideais de esquerda jamais se concretizarão de forma plena. Por eles deverei sempre lutar e também todos aqueles movidos pela mesma sede de justiça, mas jamais veremos os frutos de nossa luta plenamente desenvolvidos. Engana-se quem pensa que nego Stálin, Pol Pot, Fidel Castro, Hugo Chávez e afins para continuar com meu discurso por ideais de esquerda. Quem me acusa disso, ainda não entendeu da missa um terço. Pensam que eu vou dizer que deturparam os ideais de esquerda. Não os deturparam. Absolutamente. O que esses ditadores fizeram foi ignorar esses ideais, o que é coisa bem diferente. Se o chefe do governo cubano, por exemplo, pode sair da ilha e visitar outra nação do mundo, qualquer cidadão cubano deveria poder fazer a mesmíssima coisa, uma vez que nenhum homem é superior a outro. Se não pode, é porque em Cuba se ignoram os ideais de esquerda.

Saiba: o maior inimigo da esquerda é o discurso liberal, que, por meio de belas ficções, procura justificar a exploração do homem sobre o homem. É também o discurso conservador, que tende a conservar as discriminações de que os homens são vítimas. Esses inimigos, digo, os discursos (e não as pessoas), estão tomando todo o espaço público, contaminando mentes e corações. Diante deles, a luta é acirrada e as vitórias, sempre parciais. Como enfrentar inimigos que se valem do disfarce e da dissimulação? Como enfrentar inimigos que se infiltram até mesmo nos ditos partidos e militâncias de esquerda? A luta da esquerda contra a direita é uma luta que não tem fim, meu caro. Precisamos todos entender isso, com urgência. No entanto, mesmo assim, é uma luta necessária, uma vez que algumas batalhas podem e são vencidas. Se ainda não entendeu: o Éden é uma ilusão mítica, que nunca alcançaremos. Deixemo-lo para as ficções religiosas. O que podemos fazer é que a realidade injusta em que vivemos seja uma realidade um pouco menos injusta amanhã. Se conseguirmos isso, teremos conseguido muito. É isso o que chamo de esquerda. Nada mais.

Sérgio Santos da Silva

domingo, 19 de março de 2017

A reforma da previdência: e agora, Jacó?


De acordo com a narrativa bíblica, Jacó apaixonou-se perdidamente por Raquel e quis tê-la como esposa. Labão, o pai de sua amada, para consentir com aquela união, estipulou uma condição: Jacó deveria trabalhar 7 anos para ele, Labão, e, após esse prazo, o famoso patriarca poderia, enfim, desposar sua filha mais nova. No entanto, após ter cumprido essa condição, Jacó não teve sua merecida recompensa: em vez de Raquel, Labão o fez casar-se com sua filha mais velha, Lia, pois, segundo o costume – argumentou o pai – era necessário casar primeiro a primogênita. Se quisesse casar com Raquel, deveria Jacó trabalhar mais 7 anos. Resignado, Jacó cumpriu com mais esse prazo de trabalho, até poder, enfim, casar-se com Raquel. A narrativa termina com uma promessa de final feliz e o tema é retomado por Camões, que lhe dá um tratamento poético:

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia o pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assim negada a sua pastora,
como se não a tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
dizendo: Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida!

Os versos de Camões são belíssimos, mas, embora Jacó tenha obtido seu prêmio após 14 anos de trabalho, o poema aponta duas questões importantes:

1ª – Jacó foi enganado por seu sogro, que lhe explorou o quanto pôde;
2ª – Diante da brevidade da vida, o resultado do esforço pode não ser tão compensatório.

Por que estou relembrando essa narrativa, se este texto, conforme sinalizado pelo título, trata da Reforma da Previdência? Simples: porque ela possibilita uma analogia interessante. Imagine que você, trabalhador brasileiro, é Jacó. Nesse caso, Labão seria o governo e Raquel, a sua recompensa após anos árduos de trabalho. De acordo com o poema, o tempo de “contribuição” de Jacó foi ampliado por meio do mero arbítrio de Labão. Apesar de justificar sua medida arbitrária, é certo que Labão poderia desde o início ter esclarecido a Jacó que ele trabalharia, na verdade, 14 anos para poder casar com Raquel. Mas esse não é o modo de Labão agir. Lembre-se: Labão é o governo, e o governo não dialoga com o trabalhador. Em vez disso, explora-o, deixa-o sem opções, escraviza-o.

Podemos supor que você, o trabalhador Jacó, poderia não ter concordado com a proposta de 14 anos de trabalho, assim explicitada, mas, uma vez ludibriado, receou perder de vez sua amada Raquel, a real razão dos seus esforços, e não viu escolha: teve de resignar-se com o aumento do prazo para poder gozar as alegrias da vida ao lado do seu grande amor. Se já suportara 7 anos, poderia suportar outros 7. O amor por Raquel, afinal, é maior do que as agruras da exploração do trabalho a que tem que se submeter.

Mas o caso não é simples. Quando você, Jacó, conheceu Raquel, tinha 40 anos de idade (de acordo com a Bíblia). Com 7 anos de trabalho, de acordo com o trato inicial, desposaria sua amada aos 47 anos de idade. Com mais 7 anos de trabalho a que foi submetido, teria 54 anos quando pudesse finalmente realizar as suas bodas com Raquel. Ainda seria jovem, você deve pensar, considerando a longevidade dos tempos bíblicos. De acordo com a Bíblia, Jacó morreu aos 147 anos de idade. Mas, pensemos na possibilidade de Labão ser ainda mais cruel. Ele explicaria desde o início que a condição para você seria trabalhar 7 anos pela primogênita e mais 7 por Raquel, o que somaria um total de 14 anos de trabalhos pesados. Considerando que Jacó era pastor de ovelhas, imagine-se, então, um trabalhador rural e continuemos: após esse prazo, Labão diria para você: “meu futuro genro, entendo que você trabalhou duro em minhas terras para poder se casar com minha filha Raquel, mas só tenho duas filhas e não posso ficar agora sem nenhuma. Além disso, não posso perder um valoroso trabalhador na ativa. Você ainda é forte, ainda pode render muito mais. Estamos diante de uma situação crítica, certo? Contente-se por enquanto com Lia e trabalhe para mim mais 14 anos. Isso mesmo: trabalhe, não reclame”.

O que resta a você, diante disso? Se trabalhar para Labão mais 14 anos, só poderá casar-se com Raquel aos 68 anos, ou seja, quando tiver quase 70 anos. Apesar de as narrativas bíblicas se referirem a uma longevidade incrível, é certo que, mesmo nesse tempo, um homem de 70 anos não tinha a mesma disposição de um de 47 ou 54 anos. Quando enfim desposasse Raquel, os dois já não poderiam usufruir das alegrias do casamento que só a juventude possibilita. Se você fosse Jacó, caro trabalhador brasileiro, acharia justa essa medida labânica?

É o que vemos agora, com agravantes. Você, Jacó, trabalha a vida inteira para conquistar uma velhice digna por meio de uma aposentadoria justa, para a qual você contribui 30 (mulheres) ou 35 (homens) anos de serviço. Mas o governo, pretextando salvar o seu direito, resolve mudar as regras do jogo e você, em vez de 30 ou 35 anos, deve agora trabalhar 49 anos, se realmente deseja ficar com Raquel, ou, neste caso, com sua aposentadoria integral. Claro, se não quiser a aposentadoria integral, você deve aceitar perder Raquel e ficar apenas com Lia, a quem você não ama nem deseja. Não, não dá. Você quer Raquel. Mas, o grande problema é que a sua expectativa de vida não é bíblica. Se você começou a trabalhar aos 20 anos, só poderá se aposentar aos 69 anos, ou seja, quase 70. A expectativa de vida no Nordeste brasileiro, por exemplo, não ultrapassa os 70 anos, de acordo com dados do IBGE. Nessas condições, você, o Jacó moderno, só pode sonhar com uma terra prometida para depois da morte. Triste fim para uma narrativa que poderia terminar bem melhor, não acha? Devo dizer: nem Labão foi tão cruel com Jacó quanto o governo do Brasil em relação aos brasileiros. Na real: a sua, a nossa história, meu caro, ainda nem chegou ao fim. Ainda virá a reforma trabalhista, e você, depois disso, terá que lamber as botas de Labão. E agora, Jacó? E o que será de José?

Sérgio Santos da Silva

sábado, 18 de fevereiro de 2017

As pessoas de bem e a esquerda hipócrita


Tenho acompanhado, com certo interesse, os discursos das pessoas que denunciam a hipocrisia dos chamados justiceiros sociais. Quem defende essa tal de “justiça social”, de acordo com essas pessoas, não é apenas hipócrita, mas também contraditório, parcial, intolerante, violento, irracional, ignorante, etc. A lista de adjetivos poderia completar esta página. Li o livro do Rodrigo Constantino, o Esquerda Caviar, que endossa essa visão a respeito dos que militam por mais igualdade social e menos discriminação das minorias sociais. Segundo Constantino, seriam hipócritas que criticam as injustiças promovidas pelo Capitalismo ao mesmo tempo em que usufruem dos benefícios que esse mesmo sistema injusto lhes proporciona. No interior de seu confortável apartamento localizado em uma área nobre – denunciam – é fácil criticar as injustiças sociais.

Sem dúvida que a Esquerda precisa fazer o tempo inteiro uma autoavaliação, precisa rever continuamente seus erros, que não são poucos. Mas é curioso que quem faz esse tipo de crítica o faz com certo ar de superioridade, como se se tratasse de um ser diferenciado, sim, um ser superior moral e intelectualmente a todos os que defendem uma posição política de esquerda. Se o esquerdista é um hipócrita, ele é um autêntico defensor das causas que realmente importam; se o esquerdista é parcial, ao fazer uma leitura marxista do mundo, ele tem a visão da realidade, da verdade total e absoluta, livre de ideologias; se o esquerdista é intolerante, ao querer impor a uma sociedade conservadora valores a ela contrários, como a legitimação de novos tipos de formações familiares, ele é a tolerância em pessoa, um cristão que ama o homossexual, mas abomina a homossexualidade, como deve ser, e que defende a instituição sagrada da família. E por aí vai. Nessa visão maniqueísta e autocomplacente, a esquerda é o mal e a direita, o bem.

Já li muitos comentários nas redes sociais falando nas pessoas de bem em oposição a certos defensores de tudo o que não presta. E o que é “tudo o que não presta”? Todas as ideias progressistas que implicam algum tipo de transformação social. Nessa linha de pensamento, se alguém propõe uma transformação da sociedade, esse sujeito só pode ser pouco inteligente ou ter algum desvio de caráter. Claro, porque transformar qualquer aspecto da sociedade significa aplicar certa dose de violência no projeto de sua realização e, se a violência é evocada para resolver qualquer problema, a causa em si já perde toda a credibilidade. Tomemos como exemplo o que aconteceu recentemente no Espírito Santo. Para forçar o Estado a negociar a reposição de perdas salariais acumuladas, policiais emularam um movimento grevista, o que não é permitido na Constituição. O motim dos policiais teve como consequência uma onda de violência na região metropolitana de Vitória, na forma de assassinatos, assaltos, saques e estupros. É discutível se uma categoria profissional como os policiais militares deveriam ou não poder lutar por melhores condições salariais e de trabalho, mas o fato é que os críticos de plantão logo condenaram essas pessoas sem procurar entender as razões de seu movimento. Os grevistas não poderiam agir desse modo e deixar a cidade à mercê dos bandidos. Ponto final. Se esses policiais fossem pessoas de bem, não se comportariam dessa maneira.

As pessoas que se esmeram em criticar o justiceiro social, o famigerado comunista (palavra que hoje pode significar qualquer coisa), partem do pressuposto de que a única realidade possível é a que são capazes de enxergar; as únicas ações louváveis são aquelas que eles mesmos aprovam; a única verdade é aquela a que tiveram acesso. E, por pensarem assim, acabam redimensionando o mundo para caber em seus esquemas mentais. Assim, se o policial faz greve é porque recebeu a influência demoníaca do pensamento de esquerda, que é contra a ordem e o progresso. A esquerda quer a balbúrdia, a bandidagem solta, o caos, a destruição da nossa civilização cristã. Por isso, ao mesmo tempo em que apoia a causa dos policiais, trabalha no sentido de desmoralizar a polícia, transformando os policiais em bandidos e os bandidos em vítimas, e desarmando a população, tornando-a indefesa ante a criminalidade. E a direita, naturalmente, é o antídoto contra tudo isso, porque a direita só tem boas intenções; na direita só há pessoas boas, honestas, ordeiras, cheirosas e bonitas por dentro e por fora. A direita é o bem e a esquerda, o mal.

Quando o discurso é construído a partir dessas bases, é difícil construir diálogos entre pessoas que discordam do modo como os problemas sociais devem ser enfrentados. Quando nossa preocupação é adjetivar o outro, é jogar a culpa no outro, identificando-o como a serpente que induziu a mulher, que induziu o homem a comer do fruto proibido, destruímos qualquer possibilidade de sentarmo-nos com ele à mesa, de forma amistosa, para com ele nos confraternizar e com ele trocarmos algumas ideias e falarmos de nossas convicções. Quando só conseguimos ver no outro qualidades negativas ou a falta de qualidades positivas, vendo-nos a nós mesmos, ao contrário, com bastante benevolência, perdemos a dimensão humana do outro e a nossa também. Penso que seria um avanço se todos fôssemos capazes de dizer com sinceridade: “entendo suas razões, apesar de discordar delas; sei de suas boas intenções, embora acredite que você esteja equivocado; faz sentido o que defende, mas você deixou de considerar outras questões importantes”. Partir da ideia de que o outro também é inteligente e possui boas intenções é um bom começo.

A hipocrisia não é uma prerrogativa da esquerda, nem da direita. Nem todos os esquerdistas pensam da mesma maneira, e tenho certeza de que nem todos os direitistas também. Sendo assim, quando se critica de modo genérico os ditos justiceiros sociais, a crítica, quase sempre, revela-se infundada. Isso porque se pega o particular, o anedótico, o pitoresco, o exótico, para criar a partir disso uma generalização, quase sempre negativa, sobre a esquerda. Há pouco tomei contato com alguns vídeos tratando de uma mulher branca que foi abordada por uma negra por estar usando um turbante. A negra teria acusado a branca de apropriação cultural, uma vez que o turbante seria um elemento simbólico da cultura negra. A mulher branca teria, como resposta, mostrado sua careca, informado que tinha câncer, e dito que o turbante era dela e que usava o que bem entendesse. Não tenho dúvidas de que grande parte das pessoas que defende ideias de esquerda ficaria do lado da mulher branca, não por ela ter câncer e isso justificar o uso do turbante por ela, mas por entender que ninguém tem o direito de determinar o que outra pessoa deve usar ou como deve se vestir. Outro vídeo, de uma conhecida Youtuber conservadora, falava de uma recomendação da Associação Médica Britânica para evitar chamar a grávida de mãe, para não desrespeitar transexuais, substituindo a palavra pela expressão “pessoa grávida”. A Youtuber foi bastante irônica ao denunciar a ditadura do politicamente correto que estaria sendo defendida pela esquerda, que, para não oprimir uma minoria social, não veria problema em oprimir a maioria composta pelas grávidas, que, naturalmente, são mulheres e gostam de ser chamadas de mães. Meu comentário vai no mesmo sentido do anterior: conheço muitos esquerdistas que discordariam de recomendações desse tipo.

São muitas as generalizações que as autoproclamadas pessoas de bem fazem. Um parlamentar de esquerda cuspiu em outro de direita, comportamento repetido por um ator esquerdista contra um casal de “coxinhas”? É porque é assim que a esquerda é: o esquerdista quando não tem argumentos parte para a cuspida. Uma militante esquerdista urinou e defecou sobre a foto de um ícone da direita? Sim, a esquerda é mesmo repugnante, escrota, mal-educada e indecente. Um grupo de feministas resolve protestar desrespeitando imagens sagradas, cometendo sacrilégio e atentado ao pudor? Que horror! A esquerda toda é sacana, não respeita a nada e a ninguém. Ninguém procura saber a repercussão que essas coisas têm entre os próprios esquerdistas. Duvido que a maioria dos que se identificam com o pensamento de esquerda aprove todas essas coisas.

Nesse sentido, quase todas as críticas aos esquerdistas que tenho visto nas redes sociais são semelhantes: a esquerda é sempre alguma coisa que não a bem-intencionada e autêntica defesa de certas ideias, de certa visão de mundo. O esquerdista critica o Capitalismo, mas tem tênis de marca, roupa de grife, carro do ano, iPhone, etc. Isso é dito como se o esquerdista não estivesse inserido em uma sociedade capitalista, como se fosse possível simplesmente negar essa realidade e viver em uma bolha. De qualquer forma, a maioria das pessoas que defende ideias de esquerda não se enquadra nesse estereótipo do boa-vida comunista. Ao contrário, são pessoas que trabalham a semana inteira, de sol a sol, para poderem pagar o aluguel, fazer a feira e pagar o cartão de crédito, ou pelo menos o valor mínimo da fatura. Além disso,  insistir com esse discurso é recair na caricatura da crítica ao capitalismo: a esquerda nunca foi contra a produção, nem contra o avanço tecnológico, mas contra a exploração do trabalho e o enriquecimento dela decorrente; o desenvolvimento não sustentável, que degrada o meio ambiente e cria problemas talvez insuperáveis para as próximas gerações, e, sobretudo, contra a transformação das pessoas em algo menos que humano. Tudo isso é discurso bonito que esconde segundas intenções? Mas isso também não poderia ser dito de qualquer discurso, mesmo o da direita?

A direita se vê como asséptica, livre de pecados, sábia, verdadeira, autêntica, honesta, isenta, inofensiva. Não é como a esquerda. Nesse diapasão, se a direita defende o armamento da população, é porque tem preocupação com a segurança das pessoas. Quando a esquerda, por sua vez, defende o desarmamento é porque só está preocupada mesmo é com a segurança dos bandidos. Porque a esquerda gosta dos bandidos, por isso defende os direitos humanos e critica certos excessos cometidos por policiais. A direita sabe que a polícia tem mesmo é que se exceder no combate à criminalidade, já que bandidos não tem nenhuma pena de nós. Percebem? Não se trata de a esquerda estar errada em sua forma de pensar e a direita certa, mas do fato de a esquerda já ser julgada de antemão como mal-intencionada, como tendo intenções escusas.

Como superar esse tipo de juízo formado às pressas? Como é possível estabelecer diálogos quando todas as pontes parecem ter sido destruídas? Penso que podemos começar a reconstruir essas pontes defendendo nossas convicções com clareza, buscando desfazer mal-entendidos e deixando claro que a esquerda como um todo, por exemplo, tem certa visão de mundo e certas lutas em comum, mas não se trata de um grupo homogêneo.  A direita deveria agir do mesmo modo. O fato é que o problema não está na existência de justiceiros sociais, nem de defensores dos valores cristãos, mas de pessoas que, por se julgarem superioras, não estão muito dispostas a enxergar nem a ouvir o outro. O que veem é sempre a sua visão sobre o outro, o que ouvem é sempre o seu discurso sobre o outro. O outro já foi invisibilizado e devidamente silenciado faz tempo.

Sérgio Santos da Silva