sexta-feira, 6 de março de 2015

Combustível à intolerância*


Há algum tempo publiquei em um blog pessoal um extenso artigo defendendo o Cristianismo da recorrente acusação de incitar a homofobia e o ódio que resulta na violência contra homossexuais. Se pessoas hostilizam e até mesmo assassinam homossexuais – essa foi a minha linha de raciocínio –, não encontram, no geral, respaldo para esses atos criminosos na comunidade cristã. O uso de “no geral”, nesse caso, é mera cautela, é a consideração da possibilidade de existir algum grupo cristão radical que vá de encontro ao que defende a maioria absoluta da Cristandade. É fato que o Cristianismo condena a homossexualidade. Isso é inegável, mas é muito diferente de ser homófobo, isto é, de pregar a exclusão ou a extinção dos homossexuais. Quem pensa o Cristianismo em outros termos é porque faz uma leitura muito particular a respeito dessa religião ou se baseia na leitura que críticos desinformados ou desonestos fizeram. É notório que tais leituras equívocas acontecem, em grande medida, porque muitos incorrem no erro de achar que para compreender uma religião basta ler seus textos sagrados. Isso não é o suficiente. Para entender o Cristianismo, não basta ler a Bíblia, muito menos deter-se no Novo Testamento. É preciso, em vez disso, entender como pessoas de verdade, de carne e osso, seguidores dessa religião, entendem esses textos que consideram sagrados, de que forma os aplicam. Posso dizer que não conheço um só cristão que endosse, em nome do Cristianismo, qualquer tipo de violência contra homossexuais. E duvido que você, caro leitor, conheça algum.

É nisso que penso quando chega ao meu conhecimento o ato terrorista na redação do jornal satírico Charlie Hebdo, na França, que resultou em doze mortes. As vítimas teriam cometido o pecado mortal de retratar, em desenho, o profeta Maomé, e, ainda por cima, com o intuito de satirizá-lo. Os terroristas muçulmanos, por sua vez, teriam apenas vingado Alá das ofensas feitas a ele por infiéis ocidentais. É preciso muito cuidado ao tratar desse caso, para não sermos nós a defender uma cruzada contra pessoas inocentes. É fato que o Islamismo proíbe a reprodução de imagens do profeta, mesmo que com intenção de homenageá-lo, mas isso é muito diferente de defender que a religião de Maomé prega a pena de morte para quem contrariar essa proibição. O morticínio praticado na França em nome de Alá não encontra eco na comunidade islâmica. Quando digo isso não quero que se entenda que todos os muçulmanos entendem a questão dessa forma. Há, sim, os radicais, os fundamentalistas, que fazem interpretações radicais do Alcorão, mas esses são a minoria, embora uma minoria barulhenta. De modo algum representam a comunidade islâmica. A maioria absoluta dos muçulmanos repudia tais crimes praticados em nome do Islã.

Apesar desse fato, ironicamente, muitos cristãos, ao se referirem ao Islamismo, cometem o mesmo erro de que já foram vítimas: analisam a religião alheia a partir de uma leitura enviesada, baseada unicamente na compreensão que têm dos seus textos sagrados. E, pior, para demonstrar a superioridade do Cristianismo, esmeram-se em apontar passagens no Alcorão que revelariam, de forma inequívoca, o quanto o Islamismo prega o ódio e a intolerância aos considerados “infiéis”. Ora, esse feitiço pode se virar contra o próprio feiticeiro: há também inúmeras passagens na Bíblia em que Jeová, o Senhor dos Exércitos, permite que em seu nome se pratiquem toda sorte de violência, até mesmo o assassínio de crianças de colo, o que não parece condizer com um deus amoroso. É evidente que cristãos, no geral, não concordam com as interpretações correntes desses textos. Em vez disso, procuram interpretá-los considerando, por exemplo, as circunstâncias de um dado contexto histórico, e uma teoria geral que justifique que, naquele contexto específico, tais acontecimentos fossem necessários. É o caso da teoria evangélica dispensacionalista, para citar apenas uma das disponíveis. O fato é que as leituras dos textos se fazem a partir de uma pretensa ideia de unidade, de que os 66 livros da Bíblia traduzem a mensagem única de um deus amoroso, que, em certas ocasiões, pode até fazer justiça, mas nunca ser confundido com um ser maligno que se compraz com o sofrimento humano. Seria ingênuo pensar que leituras semelhantes não aconteçam com o Alcorão.

O fato é que religiões são feitas por pessoas e são a partir delas que devem ser entendidas. É loucura achar que elas, as religiões, sejam imutáveis, e que se encerrem em leituras estáticas de um texto. Tenho certeza de que a maioria dos religiosos discordará de mim neste ponto, mas o discurso de uma religião se adapta aos tempos. De início, resiste às mudanças determinadas pelos inevitáveis movimentos da sociedade, mas acaba por incorporá-las, pelo menos em parte.

Procurarei ser mais didático:  o que quero dizer é que toda proposta de concessão de um dado dogma ou liturgia ao discurso contemporâneo encontra, inicialmente, forte resistência entre as alas mais conservadoras, mas, com o tempo, essas acabam capitulando. Novas gerações menos ardorosas por defender as tradições religiosas e menos hostis às modernidades “do mundo” acabam por não enxergar contradição entre o exercício da religião e a incorporação de certas práticas seculares antes condenadas. Um exemplo claro disso é o uso da maquiagem pelas mulheres evangélicas no Brasil. No passado, compreendia-se, baseado em certos textos do apóstolo Paulo, que a mulher não deveria fazer uso de qualquer adereço ou enfeite, mas vestir-se com modéstia. A mulher que não seguisse essa orientação era logo associada à ímpia Jezabel, uma vaidosa prostituta descrita de modo pouco favorável no segundo livro de Reis. Portanto, nada de maquiagem. Hoje muitos não endossam mais esse discurso, reinterpretando essas passagens, e fazendo uso de outras que demonstram que para Deus a pureza do coração é mais importante que a aparência exterior. O costume cultural de se maquiar acabou sendo incorporado. O mais curioso de tudo isso é que, tendo o discurso religioso se adaptado aos tempos, crê-se, a partir desse momento, que a mensagem de Deus nunca foi senão essa atualização do dogma.

É inevitável que o Islamismo siga o mesmo caminho, embora algumas conquistas feitas por religiosos cristãos demorem um pouco mais a ser feitas entre os muçulmanos. Isso se deve a alguns fatores. Não se pode ignorar, por exemplo, que, quando o Islamismo surgiu, já havia 600 anos de história do Cristianismo. Não há dúvida de que grandes mudanças exigem grandes espaços de tempo para efetivá-las. Na Idade Média, quando os cristãos viviam seu apogeu e também seu momento de maior intolerância e de ligação ao poder temporal, o Islã estava só engatinhando. No final desse período, o Cristianismo passou por crises de poder ainda não enfrentados pelo Islamismo, que, neste exato momento, vive, em alguns países, situação semelhante à Idade Média cristã. Outro ponto importante, derivado do primeiro, é o fato de ainda não ter ocorrido, em muitos casos, a separação entre a religião e o Estado. Sem a distinção entre a mesquita e o “mundo”, e sem viver sob ares mais democráticos, aquela tem poucas chances de ser influenciada por este. Mas essas transformações, penso, são só questão de tempo. Em um contexto histórico menos marcados por enfrentamentos de inimigos externos, ou por guerras fraticidas, ou seja, em uma situação de maior estabilidade política, o que se constitui uma possibilidade futura, as lutas passarão a ser, inevitavelmente, por conquistas sociais e por direitos individuais. Em países como a Indonésia, por exemplo, que abarca a maior população muçulmana do mundo, mas onde também existe a garantia de liberdade religiosa, o Islamismo é praticado com menos rigor que nos países teocráticos islâmicos. Isso só corrobora minha percepção de que religiões são feitas por pessoas, e essas estão sujeitas a certos condicionamentos histórico-geográficos.

Não há, portanto, uma religião pronta e imutável. Não há, igualmente, um Cristianismo ou Islamismo verdadeiros, apesar do que acreditam seus adeptos. Há, em vez disso, um Cristianismo e Islamismo reais, aqueles praticados de determinada forma e em dado momento histórico. Desse modo, a tragédia do Charlie Hebdo não pode ser creditada na conta do Islamismo, mas, sim, de uma minoria radical, em clara dissonância com a comunidade islâmica. De igual modo, o crescente número de assassinatos de homossexuais no Brasil não deve entrar na contabilidade dos “crimes” do Cristianismo, mas de uma minoria que, para praticar seus atos, precisa entrar em choque com os ensinamentos da comunidade cristã. Associar cristãos a intolerantes homicidas, bem como associar muçulmanos a terroristas sanguinários é incorrer em anacronismo e agir com desonestidade. É fornecer mais combustível à intolerância.

Sérgio Santos
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*Artigo publicado originalmente na edição número 10 da revista eletrônica Kukukaya, de janeiro e fevereiro de 2015, disponível aqui.