sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Amizade é coisa de alma*

“Muito obrigado, amigo, por você ter me ouvido” – diz um dos interlocutores do diálogo contido na letra da canção Amigo é pra essas coisas, de Sílvio Silva Júnior e Aldir Blanc, gravada pelo MPB4 no seu álbum de 1970. A resposta do outro é justamente a frase que intitula esse belíssimo samba: “Amigo é pra essas coisas”. Para situar o leitor: a letra fala de dois amigos que se reencontram após um ano sem qualquer notícia um do outro. A cena transcorre em um bar. Os amigos bebem enquanto conversam sobre suas venturas e desventuras ao longo desse tempo. Nesse sentido, o reencontro se dá entre dois conhecidos, que, no entanto, não mais se reconhecem. Não compreendem o que lhes aconteceu, e julgam, pelo inusitado e imprevisível de suas vidas, que “nem Deus sabe o motivo”. Estão mergulhados no incessante devir de Heráclito e lhes escapam a novidade inaugurada a cada instante. Um deles, após um ano, envelheceu, foi abandonado pela mulher e ficou desempregado. Sua condição, a meu ver, se assemelha à do José de Drummond: “Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber...” Sim, é o seu amigo quem lhe paga a bebida. Esse, aparentemente, teve mais sorte: casou-se e desfruta de uma vida minimamente confortável, mas, ainda assim, não desconheceu o sofrimento. A canção, enfim, faz duas revelações importantes: em primeiro lugar, deixa claro que o sofrimento é universal. Em segundo, sugere que o verdadeiro amigo é aquele capaz de ouvir, capaz de esquecer, por um momento, de suas próprias dores, para oferecer carinho e atenção para o outro.
Recentemente também reencontrei um amigo, ou melhor, uma amiga, a quem não via há muito mais que um ano. Na verdade, há quase duas décadas. Com um intervalo de tempo tão grande, certamente as mudanças que ocorreram conosco foram muito maiores e mais profundas que as dos amigos da canção. Reencontramo-nos em uma pizzaria: ela e seu esposo; eu e minha esposa. Tínhamos tanto que dizer um ao outro, no entanto, mais do que falar, queríamos mesmo era ouvir! Queríamos muito compreender o que havia acontecido na vida de cada um. Ela queria saber sobre minha Paula; eu, sobre seu Alessandro. Ela queria saber notícias sobre sua cidade natal; eu, sobre a Itália para onde partiu há muitos anos. Ambos queríamos relembrar o passado, pois entendíamos que relembrar o passado era compartilhar de uma vivência que não poderia mais se repetir, e que, por essa razão, apenas nós dois poderíamos compreender.  O Ensino Médio no Anísio Teixeira nos pertencia, professores e colegas com quem convivemos nos pertenciam, aquela adolescência de meados dos anos 90 nos pertencia inteiramente. Nesse reencontro, reiteramos o diálogo da canção: Salve, meu amiga! Como é que vai, meu amigo? Tatiana, há quanto tempo! Sim, há tanto tempo!
Como já disse, o sofrimento é universal. Eu tive os meus; Tatiana, certamente, os delas. Não creio que haja fase alguma da vida livre totalmente de dor. Penso, aliás, que algumas dores nos ajudam a viver, nos fazem sentir que estamos vivos. Mas, apesar dos espinhos na carne, sinto que vivo bem. Pareceu-me que minha amiga também. É verdade que, como a letra do samba diz, minha rosa, ou seja, minha Paula acabou comigo, mas em um sentido muito diverso do da canção. Ela, que um dia foi apenas uma aluna como qualquer outra, acabou comigo, acabou com este professor. Ela, que invadiu meu mundo particular, que me tirou do meu egoísmo, que me fez esquecer quem sou, acabou, dessa forma, comigo. Minha amiga, por sua vez, acabou com seu Alessandro, depois de tê-lo fisgado na praia. Foi na orla que esses dois mundos se encontraram; foi lá que nasceu o amor dos dois, que desconheceu fronteiras. Casaram-se e atravessaram o Atlântico. O resultado? Uma linda filha, que certamente lembra muito os dois, uma vez que é “filha de peixinhos...”. Felizmente, não tínhamos, eu e minha amiga, muito do que nos lamentarmos nesse reencontro. Podemos dizer que tivemos mais sorte. Em vez de lamentações, tínhamos mesmo eram muitas vivências para compartilhar! E tínhamos tanta necessidade de ouvir! Discordo de Bandeira: as almas se comunicam, elas se entendem sim... Amizade é coisa de alma.
É preciso dizer que eu e minha amiga nos conhecemos religiosos. Fomos membros da mesma igreja, uma igreja evangélica. O tempo passou. Mudamos. Eu larguei a igreja, questionei seus dogmas, tornei-me um cético, em seguida agnóstico, depois ateu. Hoje, apesar de resgatar minha crença em Deus, continuo descrente nas religiões. Minha amiga também saiu da igreja, mas não sei que passos seguiu.  Ela me deu a entender que, apesar de não adotar uma religião, procura cultivar sua espiritualidade. Nossas trajetórias certamente são distintas, mas uma coisa temos em comum: entendemos que a amizade, o espírito de fraternidade e o amor ao próximo não são prerrogativas de um credo religioso. Sim, Tatiana é minha irmã.

Sérgio Santos da Silva

* Crônica originalmente publicada na revista Kukukaia, edição n.º 8, set/out de 2014, disponível aqui.