sábado, 8 de março de 2014

Que mal há na religião?*


Seria a religião um mal necessário? Há alguns dias ouvi um colega de trabalho sustentando tal opinião. Somos ambos professores: eu, um ateu recém convencido do equívoco do ateísmo e um entusiasmado defensor de um conhecimento possível e verdadeiro; ele, um cristão evangélico adepto do relativismo moral e epistemológico. Ou seja, enquanto defendo a radicalidade de uma concepção de verdade e de moral, ele, em vez de defender a legitimidade da pretensão do Cristianismo à verdade e a atualidade da moral cristã, apenas vislumbra um mundo caótico caso o ser humano chegue à conclusão de que suas crenças não passam de meras ilusões. Nesse caso, não importa o conteúdo religioso, mas os resultados alcançados. A religião, assim, converte-se tão-somente em um freio, uma forma de conter os excessos de indivíduos naturalmente egoístas, tanto mais se cônscios de serem plenamente “donos de si”. Sem as amarras morais da religião – raciocina meu colega –, o indivíduo se sente livre para entregar-se a toda sorte de vício, agindo apenas em benefício próprio, em busca da fruição do maior prazer possível, sobretudo em vista de sua existência efêmera e sem esperança. A consequência disso seria a volta ao estado de natureza, não aquele pensado por Rousseau, mas o concebido por Hobbes. Seria o estabelecimento do reino do egoísmo, no qual prevalece sempre a “moral” do mais forte. Esse é um ponto importante do seu raciocínio. Outro é a ideia de que desvencilhar-se das verdades religiosas poderia levar alguns a assumirem uma postura negativa diante da vida, o que, por sua vez, fatalmente poderia conduzir à depressão ou ao suicídio. A religião seria, assim, um alento, e, por conferir significado à existência humana, um elemento motivador da vida. Seriam as ditas muletas que possibilitam a caminhada dos débeis homens. Freio ou muleta, eis os denominadores comuns das religiões, segundo meu colega, e de acordo com o senso comum. Desse modo, a falta de religião ou catapulta o indivíduo para assumir-se como um imoral protagonista de sua vida, não devendo prestar contas de nada a ninguém, ou lança-o no mais fundo dos abismos do niilismo e da miséria humana.

Não, caro leitor, não creio que meu colega tenha razão: a religião não é um mal necessário. Afirmá-lo implicaria conceber um conceito de mal com o qual a religião possa ter alguma relação. Implicaria também a assunção da ideia de que, em dados contextos, certo grau de maldade pode ser necessário. Confesso que hoje não consigo refletir sobre essas implicações sem enxergar muitas incongruências e contradições. Vejamos algumas.

Incongruência nº 1: suponhamos que eu aceite que não existe algo a que se possa chamar de verdade, muito menos de “a” Verdade, com “V” maiúsculo, conforme afirma Nietzsche, entre outros autores pós-modernos. Isso minaria as pretensões da religião de descrever, além da interioridade do homem, a realidade externa a ele. Se assim é, por que eu, tendo compreendido tal verdade, isto é, que nada podemos saber com certeza, submeto-me ao discurso mistificador da religião? Tendo tal consciência, como poderia professar uma fé que sei, de antemão, que se baseia em ilusões? Se a religião é um freio, e o ser humano precisa de alguma forma de contenção, então é possível concluirmos que se está defendendo que a ignorância, sim, é um mal necessário. Mas se eu defendo a necessidade do mal da religião eu não sou um ignorante. Portanto, não posso coerentemente ser um cristão e ao mesmo tempo assumir a impossibilidade do conhecimento.

Incongruência nº 2: suponhamos mais uma vez que Nietzsche tenha razão, agora em sua crítica demolidora à moral ocidental e cristã. Uma vez que eu entenda que qualquer alicerce sobre o qual se possa construir alguma noção de moralidade foi removido, como posso assumir que a religião é um mal? O que significa dizer isso? Seria conceber que há algo a que se possa chamar de mal, mas isso contradiz o discurso do relativismo moral. Segundo essa perspectiva, não existe mal, mas apenas o mal em relação a uma dada cultura, a um dado tempo, e – pior! – a uma dada pessoa. Ora, se assumo o subjetivismo ético quando afirmo que a religião é um mal, apenas estou expressando uma opinião ou uma preferência, nunca uma descrição objetiva da realidade. Portanto, a religião não é um mal.

Incongruência nº 3: se entendo que a moral consiste em uma criação humana e contingente, como posso defender a necessidade de um mal? A afirmação de que a religião é um mal necessário implica a ideia de que é necessário em vista de um bem maior. Se você está doente, submeter-se à dor de uma injeção pode ser entendido como um mal necessário em vista do bem maior de ficar curado. Mas de onde nascem as afirmações axiológicas do homem pós-moderno? O que significa efetivamente bem e, em especial, bem maior? Por que um mundo sem egoísmo e com esperança é um bem maior do que um mundo com pessoas egocêntricas e pessimistas? Por que deveríamos preferir uma coisa à outra? A resposta pode parecer evidente para o distinto leitor, mas presumo que isso se dá porque não assume até as últimas consequências as implicações filosóficas do subjetivismo ético.

Incongruência nº 4: ouço com frequência a associação entre religião e fanatismo. Meu colega se apressa em afirmar que é religioso, mas não fanático, o que significa que ele não se vê como “dono da verdade”, estando aberto a considerar a validade de outras perspectivas. Receio que haja aqui um equívoco. Compreende-se que quem defende qualquer coisa como objetivamente verdadeiro é um fanático, incapaz de dialogar com quem quer que seja. É isso que pensa o professor e, na esteira dessa compreensão, cita Voltaire: “Posso não concordar com nada do que dizes, mas defenderei até à morte o direito de dizê-lo”. Acontece que o filósofo francês acreditava na verdade de seu discurso a favor da tolerância! E o que ele diz efetivamente? Que está disposto a ouvir, a respeitar, a tolerar quem pensa diferente dele, no entanto ele não se mostra igualmente disposto a abrir mão de suas convicções! Vivendo sob a atmosfera do Iluminismo e sendo, sobretudo, influenciado pelo empirismo de John Locke, Voltaire acreditava na possibilidade de um conhecimento científico e inequívoco. Ele nunca foi um relativista, haja vista estar circunscrito no momento que marcou o início da modernidade, com sua crença na inevitabilidade do progresso científico e moral do ser humano.

Eu poderia apontar outras inconsistências, mas creio que essas aqui expostas já deixam claro que defender que a religião é um mal necessário implica envolver-se em grandes dificuldades. Quanto a mim, penso que a religião é, sim, necessária, mas necessária do ponto de vista lógico. Ou seja, sendo o homem um ser, ainda mais um ser moral, infiro que Deus existe necessariamente e, assumindo a verdade da existência de Deus, entendo também que a religião inevitavelmente se insere na história humana sobre este planeta. Não existe cultura humana no passado ou no presente sem religião. Portanto, a religião é necessária sim, mas nunca um mal. E não há dúvidas: o meu colega está completamente enganado.

Sérgio Santos da Silva

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*Ensaio originalmente publicado na revista virtual Kukukaya, disponível aqui.