sábado, 28 de maio de 2016

O equívoco da expressão "cultura do estupro"


Muitas vezes precisamos nos esforçar para não sermos mal compreendidos. É o que farei agora. Escrevi há pouco mais de 24 horas um texto, postado em minha timeline no Facebook, sobre o caso da adolescente estuprada por mais de 30 homens. Conforme disse lá, trata-se de um crime hediondo, um ato bárbaro e cruel, que chocou toda a sociedade brasileira. É claro: uma cultura que é indulgente ao assédio sexual praticado por homens já é em si uma violência contra a mulher, que tem no estupro sua expressão maior de crueldade e selvageria. Mas não concordo com a existência de uma “cultura do estupro”. O termo é equívoco e seu uso necessariamente provocará ruídos na comunicação. O uso da palavra cultura, de acordo com o dicionário Houaiss, está ligado às áreas da agricultura, biologia e antropologia. Obviamente, nesta discussão, interessa-nos as acepções ligadas a esta última área. Reproduzo-as abaixo:

“5. conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes etc. que distinguem um grupo social
6. forma ou etapa evolutiva das tradições e valores intelectuais, morais, espirituais (de um lugar ou período específico); civilização
Exs.: c. clássica
         c. muçulmana
7. complexo de atividades, instituições, padrões sociais ligados à criação e difusão das belas-artes, ciências humanas e afins
Ex.: um governo que privilegiou a c.

Bem, de acordo com a acepção sinalizada com o nº 5, não existe uma “cultura do estupro”. Não há no Brasil um grupo social que se distinga pelos comportamentos e crenças associados à denominada “cultura do estupro”. São muitos os homens que abordam a mulher de forma invasiva? Certamente que sim. São muitos os que a ela se dirigem com palavras e gestos sexistas e desrespeitosos? Mas é claro! São muitos os que ignoram a negativa da mulher e insistem em assediá-la, forçando mesmo a barra, por acreditarem que seu “não” faz parte do jogo da sedução? Não há dúvida. No entanto, o fato de muitos homens agirem assim não significa que os homens representem um grupo que se distinga dos outros por apresentarem essa “cultura”. Os indivíduos do sexo masculino são um grupo heterogêneo, e muitos, igualmente, não adotam os comportamentos aqui descritos. São muitos os homens religiosos, moralmente conservadores ou simplesmente respeitadores. Não fosse assim, seria quase impossível um relacionamento não conflituoso entre um homem e uma mulher do ponto de vista sexual. E há muitos relacionamentos assim. É evidente que a mulher está sempre em uma situação de vulnerabilidade, sujeita, indubitavelmente, a toda forma de assédio e violência, mas não porque o homem é culturalmente um agressor sexual, mas sim porque, a despeito de não existir uma cultura do estupro ou uma cultura que com ele contribua, existe esse tipo de agressor. Da mesma forma, não existe uma “cultura da corrupção”, mas existem, sim, os corruptos e os corruptores. Não é preciso haver uma “cultura da transgressão” para haver transgressores ou uma “cultura do crime” para haver criminosos.

Não comentarei as acepções 6 e 7 porque elas estão ligadas a noções muito maiores embutidas na palavra cultura. Não poderia existir, evidentemente, uma “cultura do estupro” da mesma forma que existe uma cultura clássica, por exemplo. Nem a palavra “cultura” na expressão “cultura do estupro” tem o mesmo sentido quando aparece em expressões como “Ministério da cultura”.

Mas existe alguma cultura ligada ao comportamento sexual do homem? Sim, claro. Em nossa sociedade, espera-se que seja o homem que aborde a mulher e não o contrário, ainda que hoje muitas mulheres se sintam à vontade para tomar a iniciativa. Entenda-se: não estou afirmando que é o homem que deve ter a iniciativa, como se se tratasse de uma regra. Em vez disso, estou dizendo que é o homem, na maioria das vezes, quem age assim. Nesse sentido, quando um homem aborda uma mulher, está em busca de romance ou apenas de sexo. E na busca pela realização de seu objetivo, usa das mais diversas estratégias, desde a sincera declaração de amor até o uso do expediente da mentira; desde a paciente conquista do primeiro beijo até à abordagem invasiva e desrespeitosa. Há de tudo. Pode-se dizer que certos comportamentos sejam morais e outros, imorais, mas não é possível afirmar que há aqui um padrão de comportamento masculino. Da mesma forma como existem homens que forçam a barra para ter uma relação sexual com a mulher, não são poucos os que esperam pacientemente seu consentimento ou recorrem a uma profissional do sexo, pagando para satisfazer suas necessidades.

Mas voltemos à questão do ruído na comunicação. A expressão “cultura do estupro” tem sido eficaz na comunicação do conteúdo pretendido? Creio que não, haja vista a imensa quantidade de textos postados no Facebook questionando seu uso, entendendo a expressão do modo como abordei em meu primeiro texto e abordo neste. Se o objetivo é condenar o discurso de quem aponta o comportamento da mulher como a causa do estupro, penso que seria mais eficaz se se falasse em discurso de culpabilização da mulher pelo estupro sofrido ou uma expressão equivalente. Sem dúvida, é um termo mais longo e menos interessante do ponto de vista do marketing de ideias, mas é, com certeza, mais honesto. Se o objetivo, contudo, é afirmar que existe efetivamente um padrão de comportamento masculino caracterizado pelo assédio sexual, tornando cada homem um estuprador em potencial, então a expressão “cultura do estupro” não é só equívoca, como também mentirosa, pelos motivos já explicados.

Em nossa cultura, o estupro sempre foi um crime execrado pela maioria absoluta da população. No passado, havia mesmo no Brasil a aplicação da pena de “capação” para o estuprador, e nas penitenciárias esse tipo de criminoso sempre foi tratado com bastante hostilidade, de regra sendo feito de “mulherzinha” pelos apenados. Ademais, o fato de tanta gente indignar-se com o caso da adolescente estuprada por trinta e três homens e manifestar sua revolta nas redes sociais por meio de textos eivados do mais sincero sentimento de solidariedade pela vítima e do justo furor pelo ato praticado só demonstram que não há razoabilidade no uso da expressão “cultura do estupro”. Insistir nisso é forçar a barra, é cometer, de certa forma, contra a língua e contra a realidade objetiva, um verdadeiro estupro.


Sérgio Santos da Silva