domingo, 30 de dezembro de 2012

No fundo, uma ideia rasa



            A frase pode expressar um sentimento sincero, mas esconde certa atitude presunçosa. Acostumei-me a ouvi-la, tal a frequência com que ela é dita. De início, incomodava-me muito, depois passei simplesmente a ignorá-la. Quem diz parece não se dar conta de tudo o que está sugerido nessa simples afirmação. Quem ouve, entende instantaneamente. Nas diversas situações em que tive de me expor e revelar minhas opiniões a respeito dos mais variados temas, deparei-me, naturalmente, com muitas pessoas que defendiam opiniões contrárias às minhas e que, por essa razão, criticavam-nas, levantando-lhes muitas objeções. Mas em nenhum desses casos tive de ouvir uma frase semelhante a essa que ouço sempre que o assunto é religião. Sim, é sempre nesse contexto que ela aparece. Basta expor meu ceticismo em relação a tudo que se relaciona com uma realidade espiritual, basta assumir meu ateísmo para ser imediatamente desferido pela seguinte afirmação: “No fundo, no fundo, você acredita em Deus”. Isso mesmo. Lá no meu íntimo, apesar de confessar o oposto, devo acreditar em Deus. Meu interlocutor, ainda que não me conheça intimamente, é capaz de perceber isso. Ele sabe que falo apenas “da boca para fora”. Claro, porque é impossível que alguém não acredite em um deus, sobretudo no Deus cristão, esse deus que a norma culta me obriga a grafar com inicial maiúscula.
        Sempre pensei em dar uma resposta malcriada a esse tipo de provocação. Mas, visto ter a tendência de procurar justificativas para o comportamento alheio, sempre cedo à tentação de perdoar. Afinal, se alguém tem certeza absoluta de ter alcançado a verdade, só pode achar mesmo que essa verdade é evidente para todo mundo. Para essa pessoa, o ateu deve estar se comportando como a mulher traída que, apesar de todas as evidências em contrário, não admite que seu marido seja um adúltero. Nesse caso, ainda que a melhor amiga procure alertá-la, ainda que o tenha flagrado em situações comprometedoras acompanhado de outra mulher, ainda que tenha lido mensagens suspeitas no celular, saberá ela que seu cônjuge não mente quando diz que tudo não passa de mal entendidos. Mas, no fundo, no fundo, ela sabe que está sendo traída. E por que não admite isso? Simples: ela prefere estar casada com o adúltero, com quem construiu certa estabilidade na vida, a sofrer toda a instabilidade emocional e até mesmo financeira de uma separação.
            O problema é que a comparação com o ateu não faz sentido. O ateu nada ganha em, sabendo que Deus existe, não admiti-lo. Pelo contrário, admitindo a existência de Deus, o agora teísta deixaria de sofrer o preconceito por fugir ao pensamento da maioria. Não se pode esquecer que ser ateu significa carregar um forte estigma social. Ateus, no geral, não são bem vistos pelas pessoas. É como se sofressem de algum mal ou – pior – representassem algum mal para o mundo. Construiu-se a ideia de que ateus são seres imorais, inescrupulosos, capazes de cometer toda forma de violência. Isso porque – acredita-se – a única fonte de onde se podem extrair princípios morais é a Bíblia. E, sem um inferno a temer, não há razão para se agir com ética e amor ao próximo. Acrescente-se a isso que sua vida passaria a ter algum propósito, a perspectiva de uma existência pós-morte, a esperança de ser feliz, agora definitivamente, e de ver, afinal, a justiça sendo feita, deixa de haver qualquer justificativa plausível para sua relutância em não confessar o que já está ali, no seu âmago.
            Há ainda outra razão que me leva a evitar a resposta malcriada. É que isso só serviria para indispor as pessoas contra mim. Não obstante seja eu o ofendido pela acusação de insinceridade, o autor da frase é quem se veria no direito de se sentir indignado com tamanha falta de respeito da minha parte. Talvez outro ateu ache que eu não devesse me importar com isso, e, em vez disso, devesse radicalizar, de modo a firmar meu posicionamento frente às pessoas. É a ideia de que a melhor defesa é o ataque. Entendo essa proposta de atuação no mundo, mas percebo que, na maioria das vezes, optar por essa solução só contribui para reforçar ainda mais a imagem negativa que se tem do ateu. Não se trata, no caso, de conquistar inimizades pessoais somente, mas de alimentar hostilidades contra uma causa. E não posso esquecer que os ateus representam uma minoria, minoria essa que precisa conquistar o respeito da sociedade.
            Sempre que a expressão adverbial “no fundo, no fundo...” é dirigida a mim, penso que a pessoa que a emprega não tem coragem de fazer o mergulho em direção ao fundo. Teme que lhe falte ar ou que seja tragada por alguma correnteza. Daí permanecer no raso, apenas na superfície das ideias, evitando a discussão mais aprofundada por meio da sugestão de que nada há a discutir, já que tudo está posto diante dos olhos. Sendo assim, não adianta afirmar o contrário, pois sempre se pode dizer que “o pior cego é aquele que não quer ver...”
            Diante dessa recusa ao mergulho, pensei diversas vezes que poderia fazer “o feitiço se virar contra o feiticeiro”. A estratégia seria a seguinte: adiantar-me-ia à acusação habitual fazendo eu mesmo a acusação, só que dirigida ao meu interlocutor. Pensei em algo como: “Você diz que Deus existe, mas no fundo, no fundo, você sabe que está só se enganando, que nada disso faz sentido” ou “Você demonstra muita confiança, mas no seu íntimo cultiva muitas dúvidas a respeito de suas crenças”. Mas no final das contas, não vi vantagem nenhuma em agir da mesma forma que a maioria dos teístas. Nunca me senti autorizado a fazer julgamentos sobre o que anda no íntimo das pessoas. Acredito, no geral, no que me dizem. Se alguém diz que crê em Deus, que acredita que Jesus voltará para buscá-lo, merece todo o meu crédito. Não duvido de sua sinceridade. Acredito em cada palavra dita. Do fundo do meu coração.

Sérgio Santos da Silva

sábado, 29 de dezembro de 2012

A espantosa credulidade do ateu


            Não, não se trata de defender aqui, como o título parece sugerir, que para ser ateu é necessário ter fé. Se você é ateu, fique tranquilo quanto a isso. Se você é religioso, perca desde já suas esperanças. Não vou afirmar tal bobagem. Embora não implique, necessariamente, a exclusão da racionalidade, a fé não é, por definição, uma atitude racional. Observe-se que ao fazer tal afirmação não estou sugerindo que os conteúdos da fé não possam ter fundamentos racionais nem que o homem de fé não seja um indivíduo racional, mas que, no ato de fé, tais fundamentos são perfeitamente dispensáveis. Isso significa que a crença pura e simples precede a tentativa de justificá-la, pelo menos como regra geral. Atitude diferente de ter fé é tomada pelo ateu, que vê, na falta de razões suficientes para crer em algo, uma razão suficiente para duvidar da existência desse algo. Essa é uma operação estritamente racional, que, diferente da fé, não pode prescindir dos fundamentos da razão, ainda que não seja garantia de chegar a conclusões corretas. Embora relevante, não é essa a questão que proponho discutir neste artigo, mas a credulidade de muitos ateus em relação ao poder que a educação formal teria na construção de uma sociedade livre de religião. É uma ideia ingênua, meus caros, uma credulidade espantosa.