sábado, 18 de fevereiro de 2017

As pessoas de bem e a esquerda hipócrita


Tenho acompanhado, com certo interesse, os discursos das pessoas que denunciam a hipocrisia dos chamados justiceiros sociais. Quem defende essa tal de “justiça social”, de acordo com essas pessoas, não é apenas hipócrita, mas também contraditório, parcial, intolerante, violento, irracional, ignorante, etc. A lista de adjetivos poderia completar esta página. Li o livro do Rodrigo Constantino, o Esquerda Caviar, que endossa essa visão a respeito dos que militam por mais igualdade social e menos discriminação das minorias sociais. Segundo Constantino, seriam hipócritas que criticam as injustiças promovidas pelo Capitalismo ao mesmo tempo em que usufruem dos benefícios que esse mesmo sistema injusto lhes proporciona. No interior de seu confortável apartamento localizado em uma área nobre – denunciam – é fácil criticar as injustiças sociais.

Sem dúvida que a Esquerda precisa fazer o tempo inteiro uma autoavaliação, precisa rever continuamente seus erros, que não são poucos. Mas é curioso que quem faz esse tipo de crítica o faz com certo ar de superioridade, como se se tratasse de um ser diferenciado, sim, um ser superior moral e intelectualmente a todos os que defendem uma posição política de esquerda. Se o esquerdista é um hipócrita, ele é um autêntico defensor das causas que realmente importam; se o esquerdista é parcial, ao fazer uma leitura marxista do mundo, ele tem a visão da realidade, da verdade total e absoluta, livre de ideologias; se o esquerdista é intolerante, ao querer impor a uma sociedade conservadora valores a ela contrários, como a legitimação de novos tipos de formações familiares, ele é a tolerância em pessoa, um cristão que ama o homossexual, mas abomina a homossexualidade, como deve ser, e que defende a instituição sagrada da família. E por aí vai. Nessa visão maniqueísta e autocomplacente, a esquerda é o mal e a direita, o bem.

Já li muitos comentários nas redes sociais falando nas pessoas de bem em oposição a certos defensores de tudo o que não presta. E o que é “tudo o que não presta”? Todas as ideias progressistas que implicam algum tipo de transformação social. Nessa linha de pensamento, se alguém propõe uma transformação da sociedade, esse sujeito só pode ser pouco inteligente ou ter algum desvio de caráter. Claro, porque transformar qualquer aspecto da sociedade significa aplicar certa dose de violência no projeto de sua realização e, se a violência é evocada para resolver qualquer problema, a causa em si já perde toda a credibilidade. Tomemos como exemplo o que aconteceu recentemente no Espírito Santo. Para forçar o Estado a negociar a reposição de perdas salariais acumuladas, policiais emularam um movimento grevista, o que não é permitido na Constituição. O motim dos policiais teve como consequência uma onda de violência na região metropolitana de Vitória, na forma de assassinatos, assaltos, saques e estupros. É discutível se uma categoria profissional como os policiais militares deveriam ou não poder lutar por melhores condições salariais e de trabalho, mas o fato é que os críticos de plantão logo condenaram essas pessoas sem procurar entender as razões de seu movimento. Os grevistas não poderiam agir desse modo e deixar a cidade à mercê dos bandidos. Ponto final. Se esses policiais fossem pessoas de bem, não se comportariam dessa maneira.

As pessoas que se esmeram em criticar o justiceiro social, o famigerado comunista (palavra que hoje pode significar qualquer coisa), partem do pressuposto de que a única realidade possível é a que são capazes de enxergar; as únicas ações louváveis são aquelas que eles mesmos aprovam; a única verdade é aquela a que tiveram acesso. E, por pensarem assim, acabam redimensionando o mundo para caber em seus esquemas mentais. Assim, se o policial faz greve é porque recebeu a influência demoníaca do pensamento de esquerda, que é contra a ordem e o progresso. A esquerda quer a balbúrdia, a bandidagem solta, o caos, a destruição da nossa civilização cristã. Por isso, ao mesmo tempo em que apoia a causa dos policiais, trabalha no sentido de desmoralizar a polícia, transformando os policiais em bandidos e os bandidos em vítimas, e desarmando a população, tornando-a indefesa ante a criminalidade. E a direita, naturalmente, é o antídoto contra tudo isso, porque a direita só tem boas intenções; na direita só há pessoas boas, honestas, ordeiras, cheirosas e bonitas por dentro e por fora. A direita é o bem e a esquerda, o mal.

Quando o discurso é construído a partir dessas bases, é difícil construir diálogos entre pessoas que discordam do modo como os problemas sociais devem ser enfrentados. Quando nossa preocupação é adjetivar o outro, é jogar a culpa no outro, identificando-o como a serpente que induziu a mulher, que induziu o homem a comer do fruto proibido, destruímos qualquer possibilidade de sentarmo-nos com ele à mesa, de forma amistosa, para com ele nos confraternizar e com ele trocarmos algumas ideias e falarmos de nossas convicções. Quando só conseguimos ver no outro qualidades negativas ou a falta de qualidades positivas, vendo-nos a nós mesmos, ao contrário, com bastante benevolência, perdemos a dimensão humana do outro e a nossa também. Penso que seria um avanço se todos fôssemos capazes de dizer com sinceridade: “entendo suas razões, apesar de discordar delas; sei de suas boas intenções, embora acredite que você esteja equivocado; faz sentido o que defende, mas você deixou de considerar outras questões importantes”. Partir da ideia de que o outro também é inteligente e possui boas intenções é um bom começo.

A hipocrisia não é uma prerrogativa da esquerda, nem da direita. Nem todos os esquerdistas pensam da mesma maneira, e tenho certeza de que nem todos os direitistas também. Sendo assim, quando se critica de modo genérico os ditos justiceiros sociais, a crítica, quase sempre, revela-se infundada. Isso porque se pega o particular, o anedótico, o pitoresco, o exótico, para criar a partir disso uma generalização, quase sempre negativa, sobre a esquerda. Há pouco tomei contato com alguns vídeos tratando de uma mulher branca que foi abordada por uma negra por estar usando um turbante. A negra teria acusado a branca de apropriação cultural, uma vez que o turbante seria um elemento simbólico da cultura negra. A mulher branca teria, como resposta, mostrado sua careca, informado que tinha câncer, e dito que o turbante era dela e que usava o que bem entendesse. Não tenho dúvidas de que grande parte das pessoas que defende ideias de esquerda ficaria do lado da mulher branca, não por ela ter câncer e isso justificar o uso do turbante por ela, mas por entender que ninguém tem o direito de determinar o que outra pessoa deve usar ou como deve se vestir. Outro vídeo, de uma conhecida Youtuber conservadora, falava de uma recomendação da Associação Médica Britânica para evitar chamar a grávida de mãe, para não desrespeitar transexuais, substituindo a palavra pela expressão “pessoa grávida”. A Youtuber foi bastante irônica ao denunciar a ditadura do politicamente correto que estaria sendo defendida pela esquerda, que, para não oprimir uma minoria social, não veria problema em oprimir a maioria composta pelas grávidas, que, naturalmente, são mulheres e gostam de ser chamadas de mães. Meu comentário vai no mesmo sentido do anterior: conheço muitos esquerdistas que discordariam de recomendações desse tipo.

São muitas as generalizações que as autoproclamadas pessoas de bem fazem. Um parlamentar de esquerda cuspiu em outro de direita, comportamento repetido por um ator esquerdista contra um casal de “coxinhas”? É porque é assim que a esquerda é: o esquerdista quando não tem argumentos parte para a cuspida. Uma militante esquerdista urinou e defecou sobre a foto de um ícone da direita? Sim, a esquerda é mesmo repugnante, escrota, mal-educada e indecente. Um grupo de feministas resolve protestar desrespeitando imagens sagradas, cometendo sacrilégio e atentado ao pudor? Que horror! A esquerda toda é sacana, não respeita a nada e a ninguém. Ninguém procura saber a repercussão que essas coisas têm entre os próprios esquerdistas. Duvido que a maioria dos que se identificam com o pensamento de esquerda aprove todas essas coisas.

Nesse sentido, quase todas as críticas aos esquerdistas que tenho visto nas redes sociais são semelhantes: a esquerda é sempre alguma coisa que não a bem-intencionada e autêntica defesa de certas ideias, de certa visão de mundo. O esquerdista critica o Capitalismo, mas tem tênis de marca, roupa de grife, carro do ano, iPhone, etc. Isso é dito como se o esquerdista não estivesse inserido em uma sociedade capitalista, como se fosse possível simplesmente negar essa realidade e viver em uma bolha. De qualquer forma, a maioria das pessoas que defende ideias de esquerda não se enquadra nesse estereótipo do boa-vida comunista. Ao contrário, são pessoas que trabalham a semana inteira, de sol a sol, para poderem pagar o aluguel, fazer a feira e pagar o cartão de crédito, ou pelo menos o valor mínimo da fatura. Além disso,  insistir com esse discurso é recair na caricatura da crítica ao capitalismo: a esquerda nunca foi contra a produção, nem contra o avanço tecnológico, mas contra a exploração do trabalho e o enriquecimento dela decorrente; o desenvolvimento não sustentável, que degrada o meio ambiente e cria problemas talvez insuperáveis para as próximas gerações, e, sobretudo, contra a transformação das pessoas em algo menos que humano. Tudo isso é discurso bonito que esconde segundas intenções? Mas isso também não poderia ser dito de qualquer discurso, mesmo o da direita?

A direita se vê como asséptica, livre de pecados, sábia, verdadeira, autêntica, honesta, isenta, inofensiva. Não é como a esquerda. Nesse diapasão, se a direita defende o armamento da população, é porque tem preocupação com a segurança das pessoas. Quando a esquerda, por sua vez, defende o desarmamento é porque só está preocupada mesmo é com a segurança dos bandidos. Porque a esquerda gosta dos bandidos, por isso defende os direitos humanos e critica certos excessos cometidos por policiais. A direita sabe que a polícia tem mesmo é que se exceder no combate à criminalidade, já que bandidos não tem nenhuma pena de nós. Percebem? Não se trata de a esquerda estar errada em sua forma de pensar e a direita certa, mas do fato de a esquerda já ser julgada de antemão como mal-intencionada, como tendo intenções escusas.

Como superar esse tipo de juízo formado às pressas? Como é possível estabelecer diálogos quando todas as pontes parecem ter sido destruídas? Penso que podemos começar a reconstruir essas pontes defendendo nossas convicções com clareza, buscando desfazer mal-entendidos e deixando claro que a esquerda como um todo, por exemplo, tem certa visão de mundo e certas lutas em comum, mas não se trata de um grupo homogêneo.  A direita deveria agir do mesmo modo. O fato é que o problema não está na existência de justiceiros sociais, nem de defensores dos valores cristãos, mas de pessoas que, por se julgarem superioras, não estão muito dispostas a enxergar nem a ouvir o outro. O que veem é sempre a sua visão sobre o outro, o que ouvem é sempre o seu discurso sobre o outro. O outro já foi invisibilizado e devidamente silenciado faz tempo.

Sérgio Santos da Silva