domingo, 19 de março de 2017

A reforma da previdência: e agora, Jacó?


De acordo com a narrativa bíblica, Jacó apaixonou-se perdidamente por Raquel e quis tê-la como esposa. Labão, o pai de sua amada, para consentir com aquela união, estipulou uma condição: Jacó deveria trabalhar 7 anos para ele, Labão, e, após esse prazo, o famoso patriarca poderia, enfim, desposar sua filha mais nova. No entanto, após ter cumprido essa condição, Jacó não teve sua merecida recompensa: em vez de Raquel, Labão o fez casar-se com sua filha mais velha, Lia, pois, segundo o costume – argumentou o pai – era necessário casar primeiro a primogênita. Se quisesse casar com Raquel, deveria Jacó trabalhar mais 7 anos. Resignado, Jacó cumpriu com mais esse prazo de trabalho, até poder, enfim, casar-se com Raquel. A narrativa termina com uma promessa de final feliz e o tema é retomado por Camões, que lhe dá um tratamento poético:

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia o pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assim negada a sua pastora,
como se não a tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
dizendo: Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida!

Os versos de Camões são belíssimos, mas, embora Jacó tenha obtido seu prêmio após 14 anos de trabalho, o poema aponta duas questões importantes:

1ª – Jacó foi enganado por seu sogro, que lhe explorou o quanto pôde;
2ª – Diante da brevidade da vida, o resultado do esforço pode não ser tão compensatório.

Por que estou relembrando essa narrativa, se este texto, conforme sinalizado pelo título, trata da Reforma da Previdência? Simples: porque ela possibilita uma analogia interessante. Imagine que você, trabalhador brasileiro, é Jacó. Nesse caso, Labão seria o governo e Raquel, a sua recompensa após anos árduos de trabalho. De acordo com o poema, o tempo de “contribuição” de Jacó foi ampliado por meio do mero arbítrio de Labão. Apesar de justificar sua medida arbitrária, é certo que Labão poderia desde o início ter esclarecido a Jacó que ele trabalharia, na verdade, 14 anos para poder casar com Raquel. Mas esse não é o modo de Labão agir. Lembre-se: Labão é o governo, e o governo não dialoga com o trabalhador. Em vez disso, explora-o, deixa-o sem opções, escraviza-o.

Podemos supor que você, o trabalhador Jacó, poderia não ter concordado com a proposta de 14 anos de trabalho, assim explicitada, mas, uma vez ludibriado, receou perder de vez sua amada Raquel, a real razão dos seus esforços, e não viu escolha: teve de resignar-se com o aumento do prazo para poder gozar as alegrias da vida ao lado do seu grande amor. Se já suportara 7 anos, poderia suportar outros 7. O amor por Raquel, afinal, é maior do que as agruras da exploração do trabalho a que tem que se submeter.

Mas o caso não é simples. Quando você, Jacó, conheceu Raquel, tinha 40 anos de idade (de acordo com a Bíblia). Com 7 anos de trabalho, de acordo com o trato inicial, desposaria sua amada aos 47 anos de idade. Com mais 7 anos de trabalho a que foi submetido, teria 54 anos quando pudesse finalmente realizar as suas bodas com Raquel. Ainda seria jovem, você deve pensar, considerando a longevidade dos tempos bíblicos. De acordo com a Bíblia, Jacó morreu aos 147 anos de idade. Mas, pensemos na possibilidade de Labão ser ainda mais cruel. Ele explicaria desde o início que a condição para você seria trabalhar 7 anos pela primogênita e mais 7 por Raquel, o que somaria um total de 14 anos de trabalhos pesados. Considerando que Jacó era pastor de ovelhas, imagine-se, então, um trabalhador rural e continuemos: após esse prazo, Labão diria para você: “meu futuro genro, entendo que você trabalhou duro em minhas terras para poder se casar com minha filha Raquel, mas só tenho duas filhas e não posso ficar agora sem nenhuma. Além disso, não posso perder um valoroso trabalhador na ativa. Você ainda é forte, ainda pode render muito mais. Estamos diante de uma situação crítica, certo? Contente-se por enquanto com Lia e trabalhe para mim mais 14 anos. Isso mesmo: trabalhe, não reclame”.

O que resta a você, diante disso? Se trabalhar para Labão mais 14 anos, só poderá casar-se com Raquel aos 68 anos, ou seja, quando tiver quase 70 anos. Apesar de as narrativas bíblicas se referirem a uma longevidade incrível, é certo que, mesmo nesse tempo, um homem de 70 anos não tinha a mesma disposição de um de 47 ou 54 anos. Quando enfim desposasse Raquel, os dois já não poderiam usufruir das alegrias do casamento que só a juventude possibilita. Se você fosse Jacó, caro trabalhador brasileiro, acharia justa essa medida labânica?

É o que vemos agora, com agravantes. Você, Jacó, trabalha a vida inteira para conquistar uma velhice digna por meio de uma aposentadoria justa, para a qual você contribui 30 (mulheres) ou 35 (homens) anos de serviço. Mas o governo, pretextando salvar o seu direito, resolve mudar as regras do jogo e você, em vez de 30 ou 35 anos, deve agora trabalhar 49 anos, se realmente deseja ficar com Raquel, ou, neste caso, com sua aposentadoria integral. Claro, se não quiser a aposentadoria integral, você deve aceitar perder Raquel e ficar apenas com Lia, a quem você não ama nem deseja. Não, não dá. Você quer Raquel. Mas, o grande problema é que a sua expectativa de vida não é bíblica. Se você começou a trabalhar aos 20 anos, só poderá se aposentar aos 69 anos, ou seja, quase 70. A expectativa de vida no Nordeste brasileiro, por exemplo, não ultrapassa os 70 anos, de acordo com dados do IBGE. Nessas condições, você, o Jacó moderno, só pode sonhar com uma terra prometida para depois da morte. Triste fim para uma narrativa que poderia terminar bem melhor, não acha? Devo dizer: nem Labão foi tão cruel com Jacó quanto o governo do Brasil em relação aos brasileiros. Na real: a sua, a nossa história, meu caro, ainda nem chegou ao fim. Ainda virá a reforma trabalhista, e você, depois disso, terá que lamber as botas de Labão. E agora, Jacó? E o que será de José?

Sérgio Santos da Silva

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