De acordo com a narrativa bíblica,
Jacó apaixonou-se perdidamente por Raquel e quis tê-la como esposa. Labão, o
pai de sua amada, para consentir com aquela união, estipulou uma condição: Jacó
deveria trabalhar 7 anos para ele, Labão, e, após esse prazo, o famoso patriarca
poderia, enfim, desposar sua filha mais nova. No entanto, após ter cumprido
essa condição, Jacó não teve sua merecida recompensa: em vez de Raquel, Labão o
fez casar-se com sua filha mais velha, Lia, pois, segundo o costume –
argumentou o pai – era necessário casar primeiro a primogênita. Se quisesse
casar com Raquel, deveria Jacó trabalhar mais 7 anos. Resignado, Jacó cumpriu
com mais esse prazo de trabalho, até poder, enfim, casar-se com Raquel. A narrativa
termina com uma promessa de final feliz e o tema é retomado por Camões, que lhe dá um
tratamento poético:
Sete
anos de pastor Jacob servia
Labão,
pai de Raquel, serrana bela;
mas
não servia o pai, servia a ela,
e
a ela só por prêmio pretendia.
Os
dias, na esperança de um só dia,
passava,
contentando-se com vê-la;
porém
o pai, usando de cautela,
em
lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo
o triste pastor que com enganos
lhe
fora assim negada a sua pastora,
como
se não a tivera merecida,
Começa
de servir outros sete anos,
dizendo:
Mais servira, se não fora
para
tão longo amor tão curta a vida!
Os versos de Camões são belíssimos,
mas, embora Jacó tenha obtido seu prêmio após 14 anos de trabalho, o poema
aponta duas questões importantes:
1ª – Jacó foi enganado por seu
sogro, que lhe explorou o quanto pôde;
2ª – Diante da brevidade da vida, o
resultado do esforço pode não ser tão compensatório.
Por que estou relembrando essa
narrativa, se este texto, conforme sinalizado pelo título, trata da Reforma da
Previdência? Simples: porque ela possibilita uma analogia interessante. Imagine
que você, trabalhador brasileiro, é Jacó. Nesse caso, Labão seria o governo e
Raquel, a sua recompensa após anos árduos de trabalho. De acordo com o poema, o
tempo de “contribuição” de Jacó foi ampliado por meio do mero arbítrio de
Labão. Apesar de justificar sua medida arbitrária, é certo que Labão poderia
desde o início ter esclarecido a Jacó que ele trabalharia, na verdade, 14 anos
para poder casar com Raquel. Mas esse não é o modo de Labão agir. Lembre-se: Labão
é o governo, e o governo não dialoga com o trabalhador. Em vez disso,
explora-o, deixa-o sem opções, escraviza-o.
Podemos supor que você, o trabalhador
Jacó, poderia não ter concordado com a proposta de 14 anos de trabalho, assim
explicitada, mas, uma vez ludibriado, receou perder de vez sua amada Raquel, a
real razão dos seus esforços, e não viu escolha: teve de resignar-se com o
aumento do prazo para poder gozar as alegrias da vida ao lado do seu grande
amor. Se já suportara 7 anos, poderia suportar outros 7. O amor por Raquel,
afinal, é maior do que as agruras da exploração do trabalho a que tem que se
submeter.
Mas o caso não é simples. Quando você,
Jacó, conheceu Raquel, tinha 40 anos de idade (de acordo com a Bíblia). Com 7 anos de trabalho, de
acordo com o trato inicial, desposaria sua amada aos 47 anos de idade. Com mais
7 anos de trabalho a que foi submetido, teria 54 anos quando pudesse finalmente
realizar as suas bodas com Raquel. Ainda seria jovem, você deve pensar, considerando
a longevidade dos tempos bíblicos. De acordo com a Bíblia, Jacó morreu aos 147
anos de idade. Mas, pensemos na possibilidade de Labão ser ainda mais cruel.
Ele explicaria desde o início que a condição para você seria trabalhar 7 anos
pela primogênita e mais 7 por Raquel, o que somaria um total de 14 anos de
trabalhos pesados. Considerando que Jacó era pastor de ovelhas, imagine-se,
então, um trabalhador rural e continuemos: após esse prazo, Labão diria para
você: “meu futuro genro, entendo que você trabalhou duro em minhas terras para
poder se casar com minha filha Raquel, mas só tenho duas filhas e não posso
ficar agora sem nenhuma. Além disso, não posso perder um valoroso trabalhador
na ativa. Você ainda é forte, ainda pode render muito mais. Estamos diante de uma
situação crítica, certo? Contente-se por enquanto com Lia e trabalhe para mim
mais 14 anos. Isso mesmo: trabalhe, não reclame”.
O que resta a você, diante disso?
Se trabalhar para Labão mais 14 anos, só poderá casar-se com Raquel aos 68
anos, ou seja, quando tiver quase 70 anos. Apesar de as narrativas bíblicas se
referirem a uma longevidade incrível, é certo que, mesmo nesse tempo, um homem
de 70 anos não tinha a mesma disposição de um de 47 ou 54 anos. Quando enfim desposasse
Raquel, os dois já não poderiam usufruir das alegrias do casamento que só a juventude
possibilita. Se você fosse Jacó, caro trabalhador brasileiro, acharia justa
essa medida labânica?
É o que vemos agora, com
agravantes. Você, Jacó, trabalha a vida inteira para conquistar uma velhice digna
por meio de uma aposentadoria justa, para a qual você contribui 30 (mulheres)
ou 35 (homens) anos de serviço. Mas o governo, pretextando salvar o seu
direito, resolve mudar as regras do jogo e você, em vez de 30 ou 35 anos, deve
agora trabalhar 49 anos, se realmente deseja ficar com Raquel, ou, neste caso,
com sua aposentadoria integral. Claro, se não quiser a aposentadoria integral,
você deve aceitar perder Raquel e ficar apenas com Lia, a quem você não ama nem
deseja. Não, não dá. Você quer Raquel. Mas, o grande problema é que a sua expectativa
de vida não é bíblica. Se você começou a trabalhar aos 20 anos, só poderá se
aposentar aos 69 anos, ou seja, quase 70. A expectativa de vida no Nordeste
brasileiro, por exemplo, não ultrapassa os 70 anos, de acordo com dados do
IBGE. Nessas condições, você, o Jacó moderno, só pode sonhar com uma terra
prometida para depois da morte. Triste fim para uma narrativa que poderia
terminar bem melhor, não acha? Devo dizer: nem Labão foi tão cruel com Jacó quanto
o governo do Brasil em relação aos brasileiros. Na real: a sua, a nossa história,
meu caro, ainda nem chegou ao fim. Ainda virá a reforma trabalhista, e você,
depois disso, terá que lamber as botas de Labão. E agora, Jacó? E o que será de José?
Sérgio
Santos da Silva
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