quarta-feira, 28 de junho de 2017

Um livro para críticos de Paulo Freire

Se a internet favoreceu certa experiência democrática, possibilitando que os indivíduos assumam sua voz, expressando livremente suas opiniões – o que certamente vai ao encontro da ideia de autonomia do sujeito defendida pelo educador Paulo Freire –, é também verdade que permitir a livre expressão das ideias implica certos riscos, que, obviamente, não podemos deixar de correr por medo da liberdade. Freire jamais foi a favor de censura ou da atitude arrogante de quem se coloca na condição de quem tudo sabe e, portanto, nada teria a aprender com os ignorantes, ou seja, com os que nada saberiam. Em vez disso, ele afirmava que o conhecimento do senso comum deve ser valorizado, sendo essa uma condição necessária para sua superação. É evidente que o autor de Pedagogia do Oprimido escrevia sobre Educação quando dizia essas coisas e pensava a liberdade no contexto da sala de aula. Ou seja, o aluno, para Freire, deveria poder assumir sua voz e não se converter apenas em um sujeito passivo, um não-sujeito ou mero objeto. De qualquer forma, é possível pensarmos a liberdade de expressão em um contexto mais amplo, de certo modo, a partir da perspectiva freiriana. Nesse sentido, todos devem ser livres para expressar sua própria leitura do mundo e da palavra, mas o dito, embora não deva ser ignorado, não deve igualmente ser alçado à condição de verdade só porque dito. Isso porque nossas opiniões podem revelar equívocos de interpretação, imprecisões típicas do senso comum e outras falsificações da realidade. Precisamos trabalhar com elas, no entanto, para percebermos quando nos aproximamos e quando nos distanciamos de um conhecimento mais preciso do objeto de nosso comentário. Nesse caso, a melhor estratégia para superar a mera opinião em direção a um conhecimento válido é levando-a em consideração, é operando a partir dela. O interessante é constatarmos que as opiniões sobre a própria obra de Freire podem nos fornecer a possibilidade de verificarmos isso na prática e de percebermos os riscos e oportunidades implicados na assunção da liberdade de expressão pelo sujeito. Isso porque nunca se escreveu e se disse tanta bobagem sobre Paulo Freire quanto neste tempo de onipresença e quase onisciência das redes sociais, mas igualmente nunca houve melhor oportunidade de divulgação das ideias que de fato nosso patrono da Educação defendeu ao longo de sua vida e em sua extensa obra. Tudo isso me veio à mente quando terminei de ler as 192 páginas de seu Professora sim; tia, não – cartas a quem ousa ensinar, publicado pela editora Paz e Terra.

À primeira vista, o livro trataria tão-somente da oposição “professora”, uma categoria profissional x “tia”, uma função parental. Embora esse seja o fio condutor do livro, nele Freire discute alguns aspectos de sua obra que têm sido alvo de críticas infundadas de leitores apressados. Nas linhas seguintes falarei sobre duas dessas críticas para que se tenha ideia da relevância desta importante obra.

Por exemplo, no capítulo intitulado “Identidade cultural e educação”, Freire se dedica a defender a identidade cultural dos educandos e o necessário respeito que devemos ter por ela em nossa prática educativa. O professor é convidado a tomar conhecimento do “que se passa no mundo das crianças com que trabalham. O universo de seus sonhos, a linguagem com se defendem, manhosamente, da agressividade de seu mundo. O que sabem e como sabem independentemente da escola”. Notadamente esse convite a conhecer e respeitar o mundo dessas crianças tem sido entendido pelos críticos “de ouvido” como uma interdição do professor ao cumprimento de seu papel de ensinar, de contradizer, ainda que minimamente, a verdade do aluno. De acordo com essas pessoas, Freire seria, por exemplo, contra o ensino da língua padrão culta porque ela desrespeitaria a variante falada pelo aluno, sendo, assim, uma forma de opressão. No entanto, o autor não poderia ser mais claro, quando diz, nesse mesmo capítulo:

“Jamais disse ou sequer sugeri que as crianças das classes populares não devessem aprender o chamado ‘padrão culto’ da língua portuguesa do Brasil, como às vezes se afirma. O que tenho dito é que os problemas de linguagem envolvem sempre questões ideológicas e, com elas, questões de poder. Por exemplo, se há um ‘padrão culto’ é porque há outro considerado inculto. Quem perfilou o inculto como tal?”

Observe-se que Freire acredita ser necessário que o aluno aprenda o chamado padrão culto da língua, mas, obviamente, não porque tal padrão linguístico se constitua uma variante intrinsecamente melhor do que as variantes linguísticas populares, mas porque tal aprendizado – ele esclarece na sequência – é necessário para que se “diminuam as desvantagens na luta pela vida” e para que se ganhe “um instrumento fundamental para a briga necessária contra as injustiças e as discriminações de que são alvo”. É possível que um crítico avesso aos discursos progressistas discorde dos motivos por que Freire vê como necessário o ensino-aprendizagem da língua portuguesa padrão, mas não poderá afirmar que ele é contrário ao ensino desse tipo de conteúdo na escola. Ademais, é preciso que se diga que as declarações de Freire tanto sobre o padrão culto quanto sobre as variantes populares da língua estão corretas do ponto de vista científico. Apesar de ir de encontro ao senso comum – e frequentemente é isso o que a Ciência faz –, não há dúvidas de que atribuir determinado valor a uma variante linguística deve-se a um fenômeno estritamente social e não a alguma razão natural. Não há quaisquer características inerentes a uma determinada variante que a torne naturalmente mais correta que as demais, obrigando-nos a prestigiá-la em detrimento das outras. O assunto é denso e não cabe nessa breve resenha, mas recomendo a quem tiver interesse no aprofundamento dessa discussão a leitura das várias publicações de respeitados linguistas como Carlos Alberto Faraco, Carlos Franchi, Luiz Antonio Marcuschi ou Marcos Bagno.

Outro tema interessante abordado em “Professora sim; tia, não” é a defesa à liberdade em oposição ao autoritarismo e à licenciosidade. Muitos pretensos críticos da obra de Freire acusam-no de ter retirado a autoridade do professor e incentivado a rebeldia dos alunos. Nada mais longe da verdade. O esclarecimento desse ponto pode ser vislumbrado em obras anteriores como “Pedagogia da autonomia” e “Pedagogia da esperança”, mas aqui Freire vê mais uma oportunidade para ratificar seu pensamento. Leia:

“A educadora democrática, só por ser democrática, não pode assumir sozinha a vida de sua classe, não pode, em nome da democracia, fugir à sua responsabilidade de tomar decisões. O que não pode é ser arbitrária nas decisões que toma. O testemunho, enquanto autoridade de não assumir o seu dever, deixando-se tombar na licenciosidade é certamente mais funesto do que o de extrapolar os limites de sua autoridade.”

Nada mais esclarecedor. Freire, reiteradamente em sua obra – e esse livro não foge à regra –, opõe-se ao autoritarismo do professor na sua atuação em sala de aula, mas defende que esse mesmo professor assuma sua autoridade. Ele não deve agir como se fosse um deus todo-poderoso (a expressão “todo poderoso” aparece no livro), cujas decisões são inquestionáveis, mas não deve, da mesma forma, permitir o vale-tudo em sala, a falta de disciplina, a atitude licenciosa. Para ele, a licenciosidade é algo ainda pior que o próprio autoritarismo. Algo similar é dito em “Pedagogia da esperança”.

Recomendo a leitura integral do livro para quem pretende entender o pensamento de Freire e, talvez, desfazer certos equívocos produzidos por leituras parciais e superficiais de suas obras. Recomendo sobretudo para quem se vê em um lado antagônico do autor. Na verdade, esse convite o próprio Freire faz:

“[...] é sempre bom ler textos que defendem posições políticas diametralmente opostas às nossas. Em primeiro lugar, ao fazê-lo, vamos aprendendo a ser menos sectários, mais radicais, mais abertos; em segundo lugar, terminamos por descobrir que aprendemos também não apenas com o diferente de nós mas até com o nosso antagônico”.

Por fim, só posso dizer que tenho aprendido a ser menos sectário com Freire e certamente tenho aprendido muito com os meus antagônicos. Foram eles que me levaram à leitura dos livros do mais importante autor de Educação do nosso país.

Sérgio Santos da Silva

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