quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Para fazer o que é certo¹

Nos últimos tempos tenho me preocupado com questões morais, o que tem deixado alguns amigos mais chegados um tanto desconfiados. Diz-se que uma pessoa de espírito libertário na juventude acaba, com o passar dos anos, descambando para alguma forma de moralismo. Obviamente quem diz isso vê nesse movimento uma caminhada em direção à decadência. Nesse caso, o incipiente moralista é alguém que, cansando-se da luta, acabou por juntar-se ao inimigo contra o qual não teve forças para combater. Assim, passa a integrar o sistema, a ser mais uma peça a dar vida à engrenagem social. Muitas das vezes converte-se em um reacionário, conservador, fundamentalista, elitista, radical de direita, porco capitalista, filhote da ditadura, fascista e muitos outros adjetivos simpáticos por meio dos quais a esquerda se refere aos seus adversários. Em uma época na qual a liberdade irrestrita é o bem supremo, na qual os ideais mais desejáveis podem ser traduzidos por meio do slogan de maio de 1968, “é proibido proibir”, quem reza por outra cartilha só pode ser alguém com o sádico desejo de restringir a liberdade humana. Isso fica muito mais evidenciado hoje devido ao predomínio das concepções da Escola Francesa², que, desconstruindo os paradigmas da tradição do racionalismo moderno, interditou qualquer pretensão a uma verdade objetiva, o que resultou, no campo da moralidade, no subjetivismo ético. Evidentemente, tal perspectiva implica ampla liberdade moral, uma vez que nega a existência de valores morais válidos para todos os homens, independentemente das contingências temporais e espaciais. Não obstante isso, acostumei-me a ouvir (e, no passado, a fazer) críticas à suposta motivação moral do religioso. Seja originária de um materialista de viés iluminista (aquele que acredita na verdade científica), seja de um adepto de uma cosmovisão pós-moderna (aquele que acredita em verdades construídas), a crítica que se faz é que o religioso age moralmente por medo de ir para o inferno, ou, na melhor das hipóteses, almejando a recompensa celestial. O ateu ou o agnóstico, ao contrário, preferem fazer o certo porque é o certo e nisso reside toda sua superioridade em relação aos que procuram barganhar com Deus. O caro leitor percebeu a contradição?

Ora, é impossível ser bom sem Deus. E se a bondade existe, ela se constitui uma evidência da existência de Deus. Para entender isso, suponhamos que seja verdade que valores morais objetivos inexistam, sendo toda a moralidade um construto sócio-histórico de uma determinada comunidade humana. Se assim fosse, como seria possível “fazer o certo porque é certo”? O problema aqui seria explicar o significado da palavra certo. Seria certo, por exemplo, submeter animais a testes de laboratório? Alguns diriam: “sim, trata-se de um mal necessário para o avanço da ciência farmacêutica”; por outro lado, outros diriam: “não temos direito de dispor assim da vida dos animais”. Qual é o certo a fazer nesse caso? Outro exemplo: seria certo que a mulher tivesse direito de escolha em relação ao aborto? As opiniões também se dividem nesse caso: há os defensores da autonomia da mulher sobre seu corpo e os que defendem o direito da vida intra-uterina. Quem está certo? Mais um: é certo matar em nome de uma causa nobre? Há quem defenda isso, apesar de a maioria parecer não concordar com tal ideia. Figuras históricas como Robespierre, Stálin e Hitler pensaram assim. Estariam eles errados? Mas como é possível saber isso? Ou seja, se a moralidade não tem qualquer valor objetivo, não há bases sobre as quais se possa saber o que, afinal, corresponde ao certo. É impossível fazer o certo sem Deus.

Alguns ateus não compreendem bem o que eu afirmo aqui. Quando digo que é impossível fazer o certo sem Deus, não estou dizendo que é impossível fazer o certo se você não acredita em Deus. Portanto, um ateu pode ser uma pessoa moralmente correta, desde que esteja equivocado quanto ao seu ateísmo. Mas, se for mesmo o caso de Deus não existir, então ele não poderá fazer o certo, haja vista não existir nada a que se possa chamar de “certo”. Qualquer escolha moral que faça será apenas uma escolha entre tantas possíveis, sem nenhuma significação especial. Na verdade, nem se trata de escolha moral, já que a palavra moral nada representa nesse contexto. Se, por outro lado, Deus existir, tanto o crente quanto o ateu poderão escolher “fazer o certo porque é certo”.

Compreender isso foi o bastante para me reaproximar de uma concepção teísta. Isso porque nunca deixei de acreditar no certo e a desejá-lo, justamente por saber-me errado. A ideia de certo e errado é tão intuitiva que me parece impossível negar seu caráter de verdade. Não entendo, por exemplo, como torturar crianças pelo simples prazer de torturá-las poderia ser moralmente indiferente. Ou como dar abrigo e alimento a um necessitado poderia não ser algo objetivamente bom. Mas o que não entendo seria verdade se o ateu tivesse razão.

Com tais considerações, começo a explicar ao leitor porque voltei a acreditar em Deus. Digo começo a explicar porque essa conversa deve ser longa e não tenho pretensão de que você que me lê agora compreenda a dimensão do que estou dizendo em tão pouco tempo. É preciso aqui muita reflexão. É preciso mergulhar no problema. No entanto, tenho uma pretensão mais modesta: espero que o distinto leitor, neste final de ano, quando o clima de fraternidade paira no ar, deseje fazer o que é certo, e chegue a fazê-lo, sabendo que é certo.
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¹ Ensaio publicado na Revista Kukukaya, edição nº 3, de dezembro de 2013, acessível aqui.
² No texto original, erroneamente citei a Escola de Frankfurt. Esta desenvolveu um teoria crítica do mundo a partir de pressupostos marxistas. Queria me referia à Escola Francesa, da qual se destacam nomes como Michel Foucault e Jacques Derrida, pensadores da pós-modernidade.

            

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