Não me considero um especialista em Cristianismo. Apesar
disso, vejo-me na condição de falar com certa propriedade a respeito da
religião que moldou a cultura ocidental. Durante os primeiros 17 anos da minha
vida dividi-me entre a profissão de fé católica (até os 11 anos) e a protestante
(dos 12 os 17), mas precisamente como membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
Nos 17 anos seguintes, ao me converter ao ateísmo, dediquei-me à “militância”
contra qualquer ideia religiosa. Escrevo converter
sem aspas por hoje compreender de outro modo como se dá a assunção de uma
cosmovisão ateísta, sobre o que já falei em ensaios anteriores (disponível aqui e aqui). Escrevo militância, por sua vez, entre aspas,
porque julgo que não cheguei a me tornar um missionário às avessas, preocupado
em conquistar prosélitos para uma causa superior. No entanto, sempre que havia
oportunidade para falar de religião, desferia toda minha condenação contra o
fenômeno religioso, o qual seria responsável por todo atraso e violência
existente no mundo. Meu anátema era mais contundente quando se referia ao
Cristianismo, que teria sacrificado muitos homens da Ciência no altar da
Inquisição (Nunca obtive um só exemplo disso, mas...). Esquecia-me, porém, em
minha crítica à maior religião do planeta, que, para fazer uma análise mais
honesta e científica desse objeto, deveria me apropriar do modo mesmo como o
cristão enxerga o mundo. Ou seja, deveria compreender bem o que era de fato o
Cristianismo, e não o que eu pensava que deveria ser ou julgava que fosse. Ora,
quando criticava o Cristianismo, invariavelmente não o fazia a partir da minha
experiência anterior como cristão, mas a partir de uma leitura do Cristianismo
feita por seus críticos. Hoje compreendo isso.
É claro: o Cristianismo é criticável. Longe de mim dizer o
contrário. Penso até que a maior crítica já feita a ele provém de Nietzsche. O
filósofo alemão considerava-o uma religião de ressentidos, uma forma de
platonismo que, negando os valores do presente em função de uma imaginária
bem-aventurança no porvir, acabava conduzindo a humanidade a um tipo de
niilismo. Apesar dessa crítica, a filosofia de Nietzsche era, essencialmente,
niilista. De qualquer forma, quando Nietzsche criticava o Cristianismo, ele
falava a partir de ideias verdadeiramente cristãs: a mensagem de dar a outra
face, o deus que se deixa morrer na cruz, a crença na salvação da alma, a
negação dos valores seculares em vista de valores superiores e celestiais, etc.
Nietzsche criticou a essência mesma do Cristianismo e não o que lhe era
periférico ou até mesmo falso. Talvez seja o caso de a crítica do autor de O Anticristo carecer de sustentação, mas
ninguém poderá acusá-lo de ignorância sobre o assunto de que trata ou de
desonestidade intelectual, uma vez que nunca precisou criar um espantalho
cristão para facilitar sua crítica demolidora. Nietzsche conhecia o
Cristianismo muito bem e de perto.
Mas quando escuto alguém alertar para o perigo que o
discurso cristão representa para as minorias e oprimidos do mundo, creio que
quem fala está tratando de qualquer coisa, menos do Cristianismo. Bem, vejamos:
um amigo me fala que é a influência da religião cristã, com seus preconceitos
contra os homossexuais, a responsável pela violência praticada contra essa
minoria. Nesse caso, houvesse um mundo em que as pessoas pudessem estar
salvaguardadas de tal influência nefasta, possivelmente não haveria agressões sistemáticas
a homossexuais. Seria possível isso? Estou disposto a enveredar por essa
hipótese. Então, vamos lá:
Suponho que meu amigo não queria se referir a um mundo em
que o Cristianismo fosse simplesmente eliminado. Evidentemente, sem a hegemonia
cristã, o espaço vazio seria ocupado imediatamente pelo Islamismo, a segunda
maior religião mundial. Mas, apesar das campanhas de tolerância ao Islã hoje em
curso no Ocidente, as quais tentam construir a ideia de que se trata de uma
religião de paz (o terrorismo seria obra de uma minoria extremista), todos
sabemos o que acontece com os homossexuais nas terras dos aiatolás. Para os
desinformados, julgo que é suficiente registrar que na Arábia Saudita, no Sudão
e na Somália, por exemplo, a homossexualidade é punida com pena de morte. É
claro que sempre se poderia imaginar a hegemonia de outra religião, com um
discurso menos opressor, mas, suponho, não era isso a que meu amigo se referia,
mas a um mundo sem o Cristianismo ou qualquer outra religião, tal como
imaginava John Lennon. Para não perdermos tempo com ficções, analisarei essa
proposta à luz de fatos reais e históricos.
Serei direto: a história do Comunismo desmente a tese segundo
a qual há uma relação necessária entre uma sociedade sem religião e um mundo
mais harmônico e igualitário. O Comunismo é essencialmente ateu e se sustenta em
uma concepção materialista da história humana: o motor que a conduz é a luta de
classes. Nesse contexto, não há espaço para a transcendência. Foi justamente
esse aspecto que Karl Marx ignorou em Hegel, adotando apenas sua dialética. Um
mundo mais justo e igualitário deve ser conquistado pelos oprimidos a partir de
uma revolução, isto é, sem qualquer intervenção divina. A construção do paraíso
na Terra prescinde de Deus. Dessa forma, a religião acaba se revelando como fator
de alienação (o “ópio do povo”), sendo, por essa razão, contra-revolucionária,
daí ter que ser combatida. Onde o Comunismo imperou, foi justamente isso o que
aconteceu. E quanto aos homossexuais? O que aconteceu com essa minoria nos
países comunistas? Foram incluídos nessa sociedade ideal em que o leão pasta
alegremente ao lado do cordeiro? Absolutamente! Em vez disso, foram duramente
perseguidos, presos, submetidos a trabalhos forçados, onde encontraram, na
maioria das vezes, a morte. Mas como explicar isso? Ora, com o Stalinismo, a
homossexualidade passou a ser entendida como contra-revolucionária e “uma
manifestação da decadência da burguesia”. Leia-se o que se acha escrito na Grande Enciclopedia Soviética, editada
pelo governo soviético:
“A origem do
homossexualismo é ligada às circunstâncias sociais quotidianas, para a grande
maioria das pessoas que se dedicam ao homossexualismo, tais perversões se
interrompem tão logo que a pessoa se encontre em um ambiente social favorável (…)
Na sociedade soviética, com os seus costumes sadios, o homossexualismo é visto
como uma perversão sexual e é considerado vergonhoso e criminal. A legislação
penal soviética considera o homossexualismo punível, com a exceção daqueles
casos nos quais o mesmo seja manifestação de uma profunda desordem psíquica.”
Durante o governo revolucionário de Stálin, a
homossexualidade só não era punível em se tratando de casos patológicos. É interessante saber que muitos artigos contra
a homossexualidade foram inseridos em todos os códigos penais das Repúblicas
Soviéticas! Ou seja: ainda sem a influência do Cristianismo ou de qualquer
outra religião, poderíamos ter do mesmo modo a violência contra os homossexuais
se manifestando na sociedade e de forma sistemática. Mas talvez isso ainda não
seja suficiente para convencer o meu amigo. Ele talvez raciocine que o
Comunismo funcionava, de certa forma, como uma religião de estado e, por essa
razão, meu exemplo seria ilegítimo. Talvez seja o caso de eu imaginar um mundo
em que todos sejam educados pelos mais belos princípios humanistas. Tentarei
enveredar, então, por esse mundo utópico.
Sim, não posso me furtar ao direito de afirmar que tal mundo
é utópico, uma vez que nenhuma civilização humana jamais se estabeleceu sem o
alicerce de uma religião. Mas não custa nada fazer um esforço para tentar
entender o raciocínio aqui. Um mundo só com princípios humanistas. Ok.
Remeto-me imediatamente a Jean Jacques Rousseau. O filósofo da era da razão,
odiado por tantos que o conheceram pessoalmente, de certa forma recupera a
auto-estima do ser humano ao enunciar que todo homem nasce bom, sendo em
seguida corrompido pela sociedade, invertendo a mensagem cristã do pecado
original, segundo a qual nascemos com uma natureza fundamentalmente má. Parece-me
que Rousseau, nesse caso, acreditava na tese do meu amigo. Ora, segundo ele, não
fosse a influência nefasta da sociedade, o homem revelaria toda sua bonomia. No
entanto, pelo que se sabe, nem Rousseau escapou de tanta corrupção. Sua bondade
se manifestou em seu gesto de dar todos os cinco filhos que tivera com uma
amante para a adoção alguns anos antes de escrever um livro em que ensina como
se deve educar as crianças. Um
comunista, parodiando Rousseau, dirá: não fosse o capitalismo, viveríamos em um
mundo mais justo e igualitário. Tudo o que o Comunismo fez, no entanto, foi
criar uma igualdade tal qual Orwell descreve em sua Revolução dos bichos: todos são iguais, mas alguns são mais iguais
que os outros. Continuando a parodiar Rousseau, não fosse o Cristianismo, então
teríamos um mundo em que homossexuais e demais minorias não seriam vítimas da
opressão. É isso que você defende, meu amigo? Não creio que se sustente a tese
de Rousseau. A História nos concede inúmeros exemplos da nossa maldade
essencial. Da propensão do ser humano para o erro e o vício. Essa é a regra
geral. Mas voltarei a esse ponto. Antes, porém, desejo discutir outra coisa: será
mesmo que o Cristianismo justifica a violência contra homossexuais? Tal
mensagem de ódio está contida nos evangelhos?
Iniciei este texto
ponderando que era preciso analisar o Cristianismo a partir do próprio
Cristianismo e não a partir da visão de seus críticos. Achei necessário repetir
isso agora. Meu amigo cita passagens bíblicas em que se ordena que homossexuais
sejam mortos. Não me interessa, neste momento, proceder com uma exegese de tais
passagens do texto bíblico para demonstrar que sua interpretação é equivocada. Nem
sequer fui conferir se tais passagens existem do modo como foram evocadas. Deixo
isso para os apologistas cristãos. O problema, para mim, é de ordem mais grave.
O equívoco do meu amigo é criticar o Cristianismo a partir do que ele julga que
seria coerente o cristão defender, não a partir do que este de fato defende. Bem,
se há uma passagem do livro sagrado do Cristianismo que ordena o assassinato de
homossexuais, então parece razoável concluir que é isso exatamente o que
cristãos defendem. Sério? É isso que o evangélico ouve no culto e na escola
dominical? É isso que o católico aprende na missa ou quando se prepara para a
primeira comunhão? Nos 17 anos em que professei a religião cristã jamais tive
conhecimento de qualquer discurso no qual pudesse haver, mesmo nas entrelinhas,
qualquer animosidade contra os homossexuais. Ainda que em certos casos a homossexualidade
seja motivo de escândalo entre os cristãos, como muitas outras coisas
evidentemente são, não há, dentro do Cristianismo, a ideia de que o cristão
deve punir o pecador em virtude de seu pecado. Tal ação cabe somente a Deus. O
escândalo do cristão deve-se, segundo a Bíblia, à sua debilidade espiritual. Quando
Jesus andava e comia com pecadores era motivo de escândalo entre os primeiros
cristãos, que também eram pecadores, mas tinham de ser lembrados disso de vez
em quando. Uma das faces do evangelho cristão é anunciar que nenhum ser humano
presta. Entender isso é o primeiro passo para alcançar o Paraíso.
Presumo que o cristão tem suas razões para não levar para a
vida prática o que se acha escrito sobre os homossexuais no Antigo Testamento.
Não se trata de um Cristianismo self-service,
como meu amigo parece pensar. Não é o caso de o cristão escolher na Bíblia apenas
o que lhe convém defender. Existe, na verdade, todo um conhecimento teológico historicamente
construído que orienta essa leitura. Acontece que poucos são os críticos com
paciência e interesse suficientes para mergulhar nesse universo. E, como não o
fazem, acabam por falar sobre o que desconhecem completamente. Por puro preconceito,
supõem que não pode haver qualquer razoabilidade nessas explicações, daí não se
prestarem a ouvir o que um estudioso das escrituras hebraicas e gregas poderia
ensinar a um leigo a respeito de certas leis do Antigo Testamento. Existe, por
exemplo, uma corrente denominada Dispensacionismo, que aponta as diversas
formas como o plano de Deus se manifestou através dos séculos. Segundo essa
corrente, entender que vivemos sob uma determinada Dispensação é o caminho para
uma leitura adequada de um texto escrito sob outra. O Dispensacionismo concorre
com outras correntes interpretativas, sobre as quais não me proponho a
discorrer aqui. Os adventistas, por exemplo, têm sua própria linha de
interpretação, segundo a qual se distinguem na Bíblia leis civis, cerimoniais e
morais. As leis morais, escritas pelo próprio dedo de Deus e entregues a Moisés
em tábuas de pedra seriam as únicas de caráter permanente. As demais existiram
em certas circunstâncias e para cumprir determinados propósitos. Concedo ao meu
amigo que ache despropositadas todas essas leituras e identifique nelas uma tentativa
de se acomodar o texto bíblico a um tempo em que preconceitos no geral são
vistos como ignorância e atraso. Nesse caso, segundo a Bíblia, o homossexual
deveria mesmo ser morto, apesar de o cristão não assumir esse discurso e, para não
assumi-lo, utilizar-se de contorcionismos interpretativos. Só não concedo ao
meu amigo que afirme que o Cristianismo ensina isso efetivamente ou que dele se possa deduzir
tal conclusão. O Cristianismo pode ter seu próprio discurso, independentemente de seus acólitos procederem ou não com uma interpretação fiel do texto bíblico, a qual o meu amigo parece perseguir com peserverança.
É curioso para mim que a compaixão cristã, tão condenada por
Nietzsche, seja um aspecto negado por quem identifica no Cristianismo uma
mensagem de ódio contra os homossexuais.
Mas, apesar de não existir uma mensagem de ódio contra os
homossexuais no Cristianismo, ainda se debita na sua conta a violência de que
esse grupo é vítima no país. Um homossexual é espancado? É morto? A culpa deve
ser da condenação cristã à homossexualidade, inoculada na mente de todos
nascidos sob a influência nefasta dessa religião: quase a totalidade dos
brasileiros. Como assim? Uma pessoa agride fisicamente outra, chega a matá-la, pelo
simples fato de ser homossexual e a culpa é do Cristianismo? Pobre do agressor,
que não teve oportunidade de ter uma educação humanista higienizada da
sujeirada cristã! Caso contrário, jamais teria cometido tal ato. A primeira vítima,
no caso, deve ser ele, o agressor, e não o homossexual, o agredido. Este também,
enquanto vítima, deve ser incluído na contabilidade dos pecados do
Cristianismo. Mas, amigo, não se vê aqui o que você denunciou como Cristianismo
self-service? Se o Cristianismo
defende que a homossexualidade é algo abominável aos olhos de Deus, não defende
esse mesmo Cristianismo a amar até mesmo os inimigos? Não ensina a oferecer a
outra face? Não ensina a ter compaixão com os pecadores? Como alguém poderia
partir para a agressão física justificado pelo Cristianismo?
Sabe qual é o problema? Vivemos sob uma cultura da vitimização,
ancorada na ideia equivocada e ingênua de Rousseau (Prometi que voltaria a ele.), de onde também bebeu Marx. Tirando
todas as influências da cultura, da religião, do capitalismo, dos videogames,
da televisão, etc., o homem será bom, reencontrando-se o seu estado de natureza.
Alguém roubou, matou, sequestrou? É culpa do Capitalismo. Alguém abriu fogo em
um cinema? A culpa deve ser dos malditos videogames. Alguém espancou e torturou
um homossexual? A culpa certamente é do Cristianismo. Sem revelar uma relação
necessária entre causa e efeito, proferem-se discursos contundentes contra a
religião cristã, demonizando-a, criando uma atmosfera de preconceito contra quem
a professe. As consequências desse discurso já podem ser percebidas, mas sobre
isso falarei em outro texto.
Há algo que não compreendo e sobre isso já falei muitas
vezes. O crítico materialista na sua sanha antirreligiosa parece não se dar
conta da enorme confusão em que se meteu. Ora, pois, sob que bases morais ele
se propõe a defender o direito de minorias como os homossexuais? Ao fazer tal
defesa, ele está defendendo certa moral, mas se for o caso de tudo se resumir à
matéria, então não há escapatória: recairemos inevitavelmente em um
subjetivismo ético. E, se não há uma verdade moral válida para todos, por que o
homossexual deveria ser respeitado? Por que deveríamos condenar seu agressor? Não
vejo o que se possa dizer a respeito que seja razoável, mas estou disposto a
ouvir as explicações de quem se propuser a fornecê-las. Para o cristão a coisa é
mais simples: agir com bondade e compaixão com o pecador é um imperativo
categórico. Deus é um ser moral e é à luz disso que o ser humano descobre a
moralidade. Algo é bom porque espelha a natureza de Deus. E Deus é bom. Portanto,
o Cristianismo apresenta uma base moral sólida a partir da qual o homossexual
pode ser defendido de qualquer tipo de violência. O materialismo não pode fornecer
isso.
A violência contra os homossexuais pode ser melhor
compreendida no contexto do relativismo moral que impera em nossos dias. Quando
se fala da degradação moral característica de nosso tempo não se deve entender que
o homem moderno se entregou mais ao vício do que o homem da Idade Média ou
Antiga. Pode até ser que sim, mas há bastantes controvérsias a respeito. Prefiro
não me arriscar. O fato é que o homem é propenso ao vício desde o começo dos
tempos e isso não deve mudar até, pelo menos, a volta de Cristo, caso os cristãos tenham razão em sua escatologia. A degradação moral consiste efetivamente na perda gradativa de uma
consciência moral. A questão não é errar, mas não reconhecer mais o erro. É
esquecer mesmo a ideia de erro. É negar que tal palavra seja constituída de
significado. E, quando isso ocorre, qualquer coisa serve como justificativa
para qualquer comportamento moral. Até mesmo agredir e matar homossexuais.