terça-feira, 1 de janeiro de 2013

O ateísmo em crise


Sob a denominação de neoateus – termo que já nasce com uma conotação nitidamente pejorativa, tem sido apontado, de forma um tanto equivocada, o aumento, nesta última década, do número de pessoas que professam o ateísmo, principalmente nos Estados Unidos. Não há, contudo, dados confiáveis que confirmem isso. Na verdade, o que se verifica é o aumento no número de publicações pró-ateísmo e de certa “militância” ateísta, sobretudo após os atentados terroristas de 11 de setembro. Essa é uma informação relevante, uma vez que esse acontecimento teve motivações religiosas ou, pelo menos, teve no fundamentalismo religioso uma força propulsora para seu desencadeamento. Nesse caso, a leitura mais apropriada parece ser que o ataque às torres gêmeas expôs inequivocamente os perigos reais do discurso religioso e, em consequência, provocou uma reação por parte de quem até então se mantinha na neutralidade. Muitos ateus resolveram “sair do armário” e fazer sua voz ser ouvida, ocupando espaços antes ocupados apenas pelos adeptos do discurso religioso. A despeito de tanta exposição, o ateísmo continua a provocar a desconfiança de muitas pessoas. No geral, não se concebe que alguém possa seriamente duvidar da existência de Deus. Há quem diga claramente que ateu mesmo não existe nem nunca existiu, uma vez que o ser humano é, por natureza, crédulo. Essa defesa é feita porque, se é verdade que os aviões jogados sobre o complexo do World Trade Center possam provocar uma reação contra o fundamentalismo islâmico em particular, ou, mais radicalmente, contra a religião em si, não é igualmente verdade que alguém no interior de um avião em queda endosse o discurso ateísta, agindo como se Deus não existisse, apenas se limitando a aceitar seu fim iminente. É a velha história de que ninguém é ateu em situações de desespero.
A ideia não encerra nenhum absurdo. De fato, não se é ateu em situações de desespero. Quando a coisa aperta e não há solução à vista, o homem recorre a algo maior que ele. Quando parece que tudo está perdido, então Deus é evocado. Não foram poucas as ocasiões em que eu mesmo me peguei orando a um deus cuja existência até então eu questionava. Muitas vezes pedi a esse deus para que, caso existisse, providenciasse o fim do meu sofrimento. Ao pedido, evidentemente, seguiam-se algumas promessas, a principal de que não duvidaria mais de sua existência e bondade. Resolvido o problema, as promessas eram esquecidas e o ateísmo era reafirmado. Não há dúvidas de que esse fenômeno de negação momentânea do ateísmo ocorra com bastante frequência durante momentos de crise. Não é um dado inventado pelo crente. O problemático é a conclusão a que ele chega a partir desse fato.
Ninguém é racional em momentos de exceção. É isso que deveria se deduzir do que se expôs acima. É possível demonstrar isso claramente por meio de um exemplo simples: quem não já agiu irracionalmente quando, precisando de um documento para, digamos, assumir uma vaga de emprego, não o encontrava de modo algum? Geralmente, procura-se primeiro nos lugares mais óbvios, em seguida nos menos prováveis e, por fim, nos impossíveis. Nem a geladeira escapa de tal escrutínio. Se nada disso adianta, apela-se para mandingas ou simpatias, como torcer um lenço, dando-lhe três nós, ou apelar a São Longuinho, ao mesmo tempo em que se dão três pulinhos. É óbvio que nada disso é racional e mesmo uma pessoa que não acredita em nada disso pode se ver, no auge de seu desespero, recorrendo a esses expedientes para conseguir o que almeja.
É comum se citar a situação do homem que está à beira da morte como prova da credulidade escamoteada pelo discurso ateísta. Diz-se que, nesse momento derradeiro da vida, esse homem é tomado de uma consciência maior do significado da sua existência e, se era ateu confesso, acaba arrependido, voltando-se novamente para Deus, de quem, no seu íntimo, nunca duvidou da existência. Essa apreciação só em parte é verdadeira. É possível que, nas condições citadas, um confesso ateu passe a assumir uma postura teísta, mas concluir, a partir desse fato, sobre a insinceridade de suas convicções anteriores é ir longe demais. De qualquer forma, o julgamento de uma pessoa em tais condições não é, de modo algum, honesto, haja vista não levar em consideração as variantes envolvidas. Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, ao falar da poesia de Alberto Caeiro, outro heterônimo, distingue os poemas escritos durante sua doença dos demais, escritos durante a saúde: em cada situação, para Reis, quem escreve já não é o mesmo, porque “a doença não é a saúde”. O parâmetro de julgamento de Reis, nesse sentido, é diferente, pois considera a peculiaridade de cada momento de Caeiro. No caso do ateu que, de repente, converte-se a uma espécie de teísmo temporão, a variante envolvida é a consciência da proximidade da morte. Ora, se mesmo o crente se angustia diante da morte, se o próprio Cristo, conforme diz as Escrituras, suou sangue ao se aproximar da hora fatídica, muito mais angústia sentirá alguém para o qual a vida tem um fim, mas não uma finalidade. É notório que basta, por exemplo, a notícia de que se tem uma doença fatal e sem cura para que o indivíduo se modifique, passe a ponderar mais suas palavras e atitudes. Embora seja perfeitamente possível, não se pode esperar de quem se aproxima da morte que seja razoável, que se mantenha coerente consigo mesmo, que seja fiel às ideias que sempre defendeu. A morte, talvez o único fato certo da vida, faz o indivíduo duvidar de suas certezas. No entanto, isso não se faz pelo caminho da revisitação crítica de tudo o que se defendeu na sua curta jornada pelo mundo, mas por motivos estritamente emocionais. O sentimento, nesse caso, que mais acomete esse indivíduo é o medo, seguido da uma derradeira esperança.
Há momentos, sim, na vida, em que o ateu parece considerar com menos rigor crítico a conhecida aposta de Pascal. Sim, a ideia de que se perde muito ao apostar na afirmação de que Deus não existe, caso o contrário é que seja a verdade. Em um tempo mais sereno, ele simplesmente veria que tal aposta não representa um convite à investigação da verdade, mas o apelo emocional ao medo. A aposta é uma atitude covarde, de quem teme correr riscos, apesar de haver fortes razões para assumir a atitude “arriscada”. Mas, próximo do fim, o indivíduo cede ao apelo emocional agarrando-se a um último fio de esperança: E se a vida não terminar aqui mesmo? E se existir algum lugar para ir depois da morte?
Ter um comportamento vacilante em situações extremas é próprio do ser humano, e o ateu não foge a essa regra. O apóstolo Pedro, diante da perspectiva de morte, negou conhecer a Cristo por três vezes. Ele vacilou, apesar de, diferente do cético, ter a certeza de uma existência após esta vida. Analisando por uma ótica estritamente racional, deveria o apóstolo, confiante no poder de Deus e na salvação de sua alma, optar por dizer a verdade. Mas não se pode negar a Pedro o aspecto emocional. Ele teve medo e por isso hesitou. É claro que esse caso não se confunde com o do ateu, que venho discorrendo até aqui. O pai da igreja não teve dúvidas interiores sobre o que negou expressamente. De qualquer forma, fica nítido nos dois casos que, diante da morte, o homem não é mais o mesmo. Ademais, também fica nítido que, diante da morte, pelo modo de agir, todos os homens parecem o mesmo.
Sérgio Santos da Silva

Um comentário:

  1. Muito interessante esse seu artigo. Honesto, bem escrito, objetivo, profundo, reflexivo e impecavelmente lógico. Embora discorde do ateísmo subjacente, aprecio as ideias expostas livremente. Também penso que mudanças de crenças nas "imediações da morte", motivadas pelo medo, não devem ser citadas em defesa do Teísmo. O Teísmo acadêmico, intelectualmente sólido, não precisa dessas "migalhas argumentativas", subjetivas e insustentáveis. Obrigado! Edílson Constantino.

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