Sempre
que tenho a oportunidade de travar um bom debate sobre religião – sim, há bons
debates sobre o tema! –, deparo-me com a questão da existência de Deus. Natural
que seja assim, haja vista eu ser confessadamente ateu e, diante do meu
posicionamento sobre essa questão, a discussão acaba tendo mesmo que resvalar
para esse tópico. Sendo assim, ao longo do tempo tive a oportunidade de me
confrontar com vários argumentos que procuravam, se não provar, ao menos
apontar evidências da existência de uma divindade. Nesse campo, o teísmo
acadêmico é o que mais me tem chamado a atenção. Diferente do teísta leigo,
que, no geral, assenta sua argumentação no discurso do senso comum, o teólogo
procura, na exposição das suas ideias, demonstrar que a crença em Deus é, do
ponto de vista acadêmico, uma proposição respeitável. Daí seguir um método, uma
disciplina própria da atividade científica. Apesar de estar no lado oposto
nessa discussão, não posso, com honestidade, deixar de reconhecer que a
teologia tem proposto bons desafios para os ateus e construído sistemas
explicativos bastante coerentes, não obstante seja essa coerência mais interna
que externa. Isto é, embora a argumentação pareça obedecer aos princípios da
lógica aristotélica, não incorrendo nos erros de petição de princípio,
contradição ou tautologia, não consegue, muitas vezes, estabelecer, de forma
clara, uma relação com a realidade externa, uma correspondência fora do
discurso. Esse é o caso, por exemplo, do sofisticado argumento linguístico do
Padre Anselmo de Aosta, que, se é assentado por uma lógica impecável, cria
dificuldades para concebê-lo na exterioridade da língua. Mas não quero discutir
agora esse argumento, mas outro, talvez o primeiro que se impõe à discussão
sobre a existência de Deus; em primeiro lugar, por ser amplamente usado tanto por
leigos quanto por acadêmicos, embora de forma mais sofisticada por estes; em segundo,
por procurar estabelecer uma relação com a realidade empírica. Estou falando do
argumento cosmológico ou, como é mais conhecido, o argumento da causa primeira.
O
argumento foi proposto pela primeira vez por Platão e Aristóteles, na Grécia
Antiga, sendo retomado por Tomás de Aquino, na Idade Média, por Leibniz, na
Idade Moderna, e, finalmente, por William Lane Craig, na Contemporânea (este,
com uma versão bastante singular, conhecida como argumento cosmológico Kalam).
Evidentemente arrolei aqui apenas os nomes mais significativos. Muitos outros
filósofos e teólogos retomaram o argumento, criando-lhe algumas variações. Em
síntese, o argumento cosmológico consiste, fundamentalmente, no seguinte raciocínio:
1ª - Tudo o que veio a existir tem uma causa. 2º - O universo existe. Apesar
disso, podemos conceber sua não-existência. Ou seja, o universo não é
essencialmente existente, o que pressupõe que ele veio a existir, isto é, ele
tem uma causa; 3º - Não é possível haver uma regressão infinita de causas. O
universo, não existindo por si, pressupõe uma causa primeira que seja, por
definição, essencialmente existente e incausada. 4º - Essa causa, por
necessidade lógica, apresenta atributos compatíveis com uma divindade:
onipotência, onisciência, pessoalidade, etc.
Espero ter sido
fiel à proposição do argumento. É comum que o não especialista no assunto (eu
me incluo nisso) incorra no erro de apresentar uma caricatura dos argumentos pró-teísmo,
o que, evidentemente, torna mais fácil sua crítica. Mas isso seria desonesto do
ponto de vista intelectual. Não é essa a minha proposta aqui. Se este é o caso,
a simplificação não é proposital.
Feita a
ressalva, devo dizer que considero, sim, o argumento bastante plausível. É
possível observar no mundo empírico essas relações de causalidade. Mesmo o
leigo consegue perceber tais relações. Não é à toa que esse raciocínio tenha
sobrevivido ao longo do tempo. Parece bastante razoável que o universo tenha tido
um início, já que é difícil concebê-lo como sempre existente, muito embora seja
esta também uma possibilidade. De qualquer forma, algumas versões do argumento
da causa primeira nem implicam um início para o universo. A causa primeira,
nesse caso, é compreendida como a causa fundamental, por definição incausada, que
mantém tudo em existência. Apesar de achar o argumento bastante engenhoso, não
posso deixar de lhe fazer uma crítica. Ainda que se demonstre que o universo é
contingente, não sendo causado por si mesmo, ainda que se deduza daí uma causa
primeira para ele, não podemos ter garantia de que tenhamos, por este método,
conquistado a verdade. Argumentos como esse são produtos do discurso e nele se
mantém. Embora os dados iniciais do argumento cosmológico sejam observáveis
empiricamente, sua conclusão permanece apenas no domínio da linguagem. Não é
possível verificar – e certamente não é essa a intenção dos seus proponentes – se a dedução lógica a que se chega corresponde a um fato
da realidade.
Não vejo, nesse
caso, muita diferença entre este argumento e o do Padre Anselmo. Evidentemente o
bispo de Cantuária não precisou iniciar sua argumentação com dados observáveis,
sendo seu argumento inteiramente a priori, mas procurou extrair igualmente de proposições
aceitáveis uma conclusão logicamente necessária. De acordo com seu argumento, se
Deus, por definição, é o ser sobre o qual não é possível dizer nada maior, se
entendemos essa proposição, devemos deduzir necessariamente sua existência na
realidade, uma vez que, não existindo, deixaria de ser o ser sobre o qual não é
possível dizer nada maior, o que seria contraditório. Em ambos os casos, observa-se
um tratamento rigoroso da lógica, o que é, de fato, bastante louvável, mas não
suficiente para estabelecer, em definitivo, uma verdade. Não se pode negar, por
exemplo, que David Hume tenha apontado para outras possibilidades de raciocínio
com sua ideia de causalidade apenas aparente, muito embora o teísta acadêmico possa
considerar superada sua objeção ao argumento cosmológico. O fato é que a lógica
convencional cria uma coerência interna, talvez impossível de ser contestada,
mas igualmente incapaz de alcançar o que é exterior à língua.
No geral, o
cético não consegue acompanhar as nuances do argumento cosmológico. Não
necessariamente por desonestidade intelectual, mas por se ver enredado em um
argumento que para ele é, sobretudo, linguístico. Serve como exercício de retórica,
mas lhe falta o poder de convencimento. Evidente que um teísta pode objetar que
evidências para a existência de Deus não poderiam ser dadas por outro método,
haja vista a singularidade do objeto de estudo, irredutível aos métodos
empíricos nos moldes positivistas. Concordo com a objeção, mas ela não é capaz
de satisfazer a necessidade do cético por dados mais concretos. E, por razões
que não cabem neste artigo, endosso essa atitude do ceticismo. Entendo-a como sadia
e inevitável para quem a desconfiança vigilante se sobrepõe à inclinação a acreditar.
É preciso que se
considere ainda que, pelo menos inicialmente, o ateísmo se estabelece pela negação
das divindades das religiões e não de um ser necessário em um sistema lógico. No
Ocidente, por exemplo, o ateísmo consiste, nas suas primeiras manifestações, na
negação do Deus cristão e de tudo que está implicado em sua crença. Não ignoro
que o argumento cosmológico pretende apontar uma causa para a existência do
universo que, por necessidade lógica, apresenta características
compatíveis com o Deus cristão e não fazer, exatamente, a defesa do Cristianismo.
Mas, se é possível ao ateu aceder, em parte, ao argumento cosmológico, não é
provável que o faça em relação a essa última consequência nele implicada. Por
mais que pareçam mesmo necessários os atributos da causa primeira, sua associação,
por exemplo, com uma figura como Jesus será sempre vista pelo ateu como um
gigantesco salto. Não se trata do caso – preciso reforçar – de não querer “dar
o braço a torcer” e admitir a plausibilidade do teísmo acadêmico, mas sim da incapacidade
real de fazer tal inferência. O argumento, na sua tentativa de contato com o
mundo real, acaba se revelando inócuo. Para o ateu, Jesus encerra em si mesmo
incoerências suficientes para que não se leve a sério sua justaposição a um Deus
deduzido pela lógica. Sendo assim, seu ateísmo não sofre qualquer abalo mesmo fazendo
concessões ao milenar argumento da causa primeira. Ainda assim, acredito que o
argumento merece continuar sendo discutido e o diálogo respeitoso e honesto entre
teístas e ateus deve existir necessariamente. É esta a primeira causa que, como
ateu, tenho me empenhado em defender.
Sérgio Santos da Silva
Outro artigo muito interessante, embora não tão tecnicamente preciso quanto o anterior. Não pretendo questionar ou criticar o texto; muito pelo contrário, considero-o excelente. Contudo, deixo aqui apenas 3 observações: 1)Argumento Cosmológico é um termo usado para representar uma família de argumentos filosóficos a favor da existência de Deus a partir do universo físico; não um argumento que se ocupa simplesmente da causa primeira. 2)Não há qualquer possibilidade de um universo material existir eternamente; nem física nem metafisicamente. A concepção de um universo estático e eterno é, hoje, superada pela ciência moderna. 3) A afirmação de que o argumento cosmológico possui premissas empíricas verdadeiras e uma conclusão que não se sustenta no mundo extralinguístico é simplesmente inválida. Se a conclusão deriva corretamente das premissas, sem qualquer desvio lógico, é de se esperar que esta alcance o mundo físico. Não se trata de um argumento meramente linguístico ou retórico. A questão está em saber se a lógica humana serve para descrever a realidade lá fora ou se existe mesmo uma total dicotomia entre o universo simbólico do discurso e o plano físico do mundo em que vivemos. É a razão capaz de entender e descrever, embora de forma parcial e fragmentada (daí a necessidade de constantes revisões), a realidade extramental? Podemos confiar em nossas capacidades mentais para encontrar a verdade? Da resposta a estas questões depende a própria razão de ser das ciências. As ciências rígidas dão por assentado que sim. A matemática, embora um ramo lógico do saber, também percebe sua eficácia no mundo físico. As ciências humanas, embora em menor grau, também percebem de modo otimista a correspondência de seus melhores modelos teóricos com a realidade. O que fazer então com o argumento lógico-filosófico que, conforme o autor, não convence os ateus de que se transpõe ao mundo extralinguístico? Necessita-se de um método de verificação no mundo real? A construção lógica do argumento já não é suficiente? É necessário observação empírica complementar? Se é assim, caímos na falácia do empirismo. Ou seja, um argumento racional, mesmo que impecável segundo as leis da lógica, só tem valor se complementado por observação. Isto exclui todas as ciências humanas e toda e qualquer afirmação, mesmo que ditas científicas, sobre o passado que nos é inacessível. Tal conclusão parece decorrer do artigo acima. Porém, não pretendo ser desonesto com o autor e nem "colocar palavras em sua boca". Penso, contudo, que este ponto (o empirismo "velado" do autor) pode ser melhor desenvolvido num próximo artigo; pois embora esteja perceptível no texto, foi mais assumido como verdadeiro do que provado. Sei que o propósito do autor era outro, mas me parece tão significativo este ponto que mereceria um próximo artigo. Mas esta é só a minha opinião... apenas uma sugestão. No mais, o artigo é bem escrito; digno de um bom professor de redação (por sinal, um dos mais proeminentes que conheço). Sinceramente! Edílson Constantino.
ResponderExcluirComo deísta, sinto-me na obrigação de tirar o chapéu para você, Sérgio, pela bela argumentação. Bom texto, bem fundamentado. Parabéns!
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