quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O ateu das lacunas*


Em meu artigo anterior, defendi que é natural que, em momentos de crise, o ateu vacile quanto às suas convicções a respeito da inexistência de Deus. Nesse momento – afirmei –, sua capacidade racional fica comprometida e ele passa a pensar e a se comportar de modo mais emocional do que o costumeiro. Na ocasião, só queria dar uma resposta à habitual provocação de pessoas religiosas, que, no geral, afirmam que o ateu, quando está diante de uma situação desesperadora, acaba por renegar seu ateísmo, clamando pelo auxílio divino. Mas, se isso é verdade, em nada tal “conversão” tardia corrobora para a discussão a respeito da existência de Deus. Ora, posso clamar por Deus e, ainda assim, ser verdade que ele não exista. É isso que eu espero ter deixado claro. Aquele artigo, porém, embora publicado na primeira edição desta revista, foi escrito em outra época da minha vida, época em que eu assumia uma cosmovisão materialista. Publiquei-o aqui porque continuo defendendo as linhas gerais do que se acha nele escrito, mas hoje, estranhamente para alguns, voltei a acreditar em Deus. E é para falar sobre essa convicção que dedicarei os parágrafos seguintes.

Observe o leitor que usei a palavra convicção para definir meu retorno ao teísmo (crença em Deus). Sim, como quase todo ateu (Há mesmo necessidade do quase?), fui, em primeiro lugar, um crente. Mas, ao longo de 17 anos, assumi o ateísmo na esfera teórica ou prática. Ao longo de 17 anos critiquei toda forma de religião organizada. Ao longo de 17 anos achei que a crença em Deus era uma forma de escravizar mentes. Ao longo de 17 anos achei que uma pessoa inteligente e questionadora naturalmente acabaria ateia. Achei, durante todo esse tempo, que a humanidade estaria mais bem servida sem as “ilusões religiosas”. Hoje não penso mais assim. Mas o que aconteceu? Como explicar tal transformação? Como um ateu convicto torna-se um não menos convicto teísta? Interessante que esses foram os mesmos questionamentos que me fizeram quando eu, evangélico atuante, aos 17 anos abandonei a Igreja e passei a denunciar como engano e violência as ditas “verdades eternas”. Como é possível não mais crer em Deus? Curioso, nos dois casos, é a coincidência do tempo: 17 anos crente, 17 anos incrédulo. Agora, novamente crente. Não, não sou supersticioso. Trata-se mesmo de uma coincidência, embora interessante. Mas, para ser honesto, devo esclarecer uma coisa: estou incluindo na minha fase ateia todo o período em que me declarei agnóstico. Se o leitor não sabe, agnóstico é o indivíduo que admite seu desconhecimento, sua ignorância sobre certos temas. Ele não se vê capaz de posicionar-se quanto à existência de Deus. Deus existe? “Talvez”, ele dirá. Deus não existe? “Talvez”, dirá no mesmo tom. “Eu não sei”. Era isso que eu respondia sempre que perguntado sobre o tema. Incluo esse período agnóstico na minha fase ateísta porque, embora admitisse a possibilidade de Deus existir (ou não), a palavra Deus, para mim, já havia perdido, naquele momento, todo seu significado original.

Antes de continuar, acho prudente explicar melhor este ponto. Quando digo que Deus existe, o que quero afirmar com isso? O que é Deus? Essa pergunta deve anteceder à outra, mas rotineira: quem é Deus? Que o leitor perceba aqui que o uso do pronome quem já sugere uma resposta para o primeiro questionamento: para quem pergunta, Deus é um ser pessoal. Mas é essa ideia mesma que está presente na indagação Você acredita em Deus? O interlocutor que pergunta isso não está querendo saber se eu acredito em uma energia cósmica impessoal e destituída de intencionalidade. Em vez disso, deseja saber se eu acredito em uma teleologia subjacente a todo o universo. Existe um propósito na vida ou esta é resultante de forças cegas e aleatórias?  Enquanto agnóstico, era assim que eu concebia o Deus possível: uma energia primordial, cega e impessoal. Mas, definitivamente, Deus não é isso. Ou melhor, se eu defino Deus dessa forma, permaneço usando a palavra, mas meu “Talvez Deus exista” só pode se constituir em fonte de equívocos ao pretender-se uma resposta à pergunta do meu interlocutor. Estamos os dois a falar de coisas bem distintas. Se afirmo hoje que Deus existe, fique claro: estou afirmando, sem dúvida alguma, que um ser pessoal, onipotente, onisciente e onipresente existe.

Mas o espaço deste artigo é demasiado curto para que eu possa explicar a história da minha “reconversão” ao teísmo. Isso deverá ser explorado em artigos posteriores. Posso adiantar, no entanto, que pude concluir, após travar muitas discussões com teístas e ateus, assistir a diversos vídeos no Youtube, ler alguns artigos e livros, que não havia nada que fizesse do ateísmo uma concepção de vida racionalmente superior ao teísmo. Não se trata de uma perspectiva intelectualmente mais respeitável. Pude concluir, para espanto meu, que não há um só argumento positivo a favor do ateísmo. O ateu, no geral, assume sua (des)crença baseado na falta de razões suficientes para acreditar na existência de Deus. Quase todos declaram exatamente isso. Eu declarava. Trata-se de um ateísmo das lacunas. Ainda que fosse esse o caso, de modo algum, conforme declarou o ateu Carl Sagan, a ausência de evidência pode ser confundida com a evidência da ausência. Ora, Deus pode existir ainda que seja impossível prová-lo. Não obstante essa observação, há, sim, razões positivas para defender o teísmo, e sobre elas espero poder escrever em breve. Diferente do que muitos pensam, para chegar à conclusão de que Deus existe não é necessário ter fé.


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* Ensaio publicado na revista eletrônica Kukukaya, edição nº 2, de novembro de 2013, acessível aqui

domingo, 3 de novembro de 2013

Um poeta de palavra*

Amanheci hoje com o “Livro de palavra”, do poeta João Andrade. Li-o em cerca de uma hora e fui tomado por um sentimento paradoxal: um entusiasmo que sente necessidade de se conter. Explico-me.

Conheço o poeta e isso representa, ao mesmo tempo, um privilégio e uma limitação. Não há dúvida de que fazer parte do círculo de amizades de um grande escritor constitui-se um grande privilégio, uma oportunidade de ter contato com um singular modo de enxergar o mundo. Penso que os poetas têm, no geral, muito que dizer, além do que já tenham dito por meio dos seus poemas. No entanto, ser amigo de um poeta, sobretudo de um nome desconhecido do grande público (apesar dos prêmios literários que, merecidamente, conquistou), põe qualquer juízo sobre sua obra em suspeição. É como se fosse impossível transcender o registro da bajulação. Por esse motivo, prefiro, de regra, escrever sobre João Andrade como se não o conhecesse, ou melhor, como se o conhecesse tão-somente por meio de sua arte. É o que tentarei fazer brevemente agora:

A poesia de João Andrade é desconcertante, no sentido mais estrito da palavra. Usando as palavras de Torquato Neto, ela desafina “o coro dos contentes”, revelando, de forma harmoniosa, a desarmonia existente no peito do poeta. Ou seja, seu texto flui, revela um ritmo bem marcado, uma sintaxe descomplicada e uma prosódia nem um pouco forçada, o que aproxima o texto do leitor. Em um tempo em que a poesia, no geral, tem se tornado incomunicável, hermética, locus de experimentalismos incapazes de provocar qualquer experiência estética no leitor ou lugar comum de dadaísmos que, por nada dizerem, não fariam a menor falta se nunca tivessem sido postos no papel, João Andrade nos convida a trilhar as estradas do poetar. Seu texto não é apenas significante, mas também significa. Mas a escolha por ser de fácil leitura não é de modo algum a escolha pelo fácil. João não se deixa seduzir pela sereia que promete prazeres indescritíveis a quem apenas se entrega a seus encantos. Ele prefere cair nas ciladas de Cila ou no abismo de Caríbdes. João não busca o aplauso dos que gostam do óbvio, do folhetinesco, do já tantas vezes dito sempre do mesmo modo. Sua poesia não quer acalentar ninguém, pois seu canto não tem motivo:

Não há motivo para meu canto,
No entanto canto mesmo assim.
Não há razão para o espanto
E não espanto os males que há em mim.
Não há caminho por onde sigo
E o que digo não é bom ou ruim.
Palavras carrego em sigilo
E somente elas estarão comigo
No fim.

Ou seja, se é verdade que a poesia de João Andrade é de fácil leitura e comunica-se com o leitor, não é igualmente verdadeiro que a ele se entrega facilmente. Em vez disso, exige-lhe a reflexão, o sentimento, a busca da palavra, a procura da poesia. É isso que encontramos no seu mais novo livro.

OPS! Quase me esqueço: o "Livro de palavra" pode ser adquirido na livraria Nobel Salgado Filho.

*Texto postado no Facebook em 27 de outubro de 2013


Cenas de cinema

Li o 50 anos a mil. Editado pela Nova Fronteira, a autobiografia de João Luiz Woerdenbag Filho, mais conhecido como Lobão, é de provocar a reação mais bem traduzida pela expressão “é foda”. Não dá para falar diferente da escrita do cantor e compositor que se insurgiu contra, segundo suas palavras, a bundamolice que tomou conta da cultura brasileira. Lobão não é condescendente com o esquema de venda de discos das gravadoras, denuncia o jabaculê que tomou conta das rádios, não endossa o discurso politicamente correto e não tem papas na língua. Sua autobiografia virará filme, sob a direção do cineasta José Eduardo Belmonte.

Apelidado carinhosamente por familiares como “Xurupito”, o que era motivo de constrangimento público, Lobão passou a infância e início da adolescência tendo que conviver com uma doença rara nos rins, a nefrose e a superproteção materna. Curado dessa doença aos 12 anos, João Luiz terá que conviver ainda com convulsões epiléticas e com o tratamento à base de Rivotril. Aos 16 anos, é contratado como baterista do Vímana, banda de Lulu Santos que acompanhava as apresentações de Marília Pera. Nesse tempo, tem contato com as drogas, com as quais nunca chegou a ter uma relação patológica. Não chegou a concluir o Ensino Médio. Após o Vímana, Lobão integraria a Blitz, do Evandro Mesquista, mas romperia com a banda antes de sua consolidação no cenário musical. Em vez de participar do sucesso de uma banda juvenil, que, para ele, não difere muito das que existem hoje, Lobão resolve seguir carreira solo com o seu Cena de cinema. As canções do álbum serão motivo de desentendimentos com Herbert Vianna, a quem ele acusa de tê-lo plagiado. Blitz, Herbert, Caetano Veloso, Gil, etc. Muitos serão os artistas criticados por Lobão, ontem e hoje, o que não o torna de modo algum simpático. No entanto, tem igualmente uma relação muito positiva com outros artistas, como Cazuza, Ritchie, Lulu Santos, Marina, Paulinho da Viola, Elza Soares, etc. Lobão é preso algumas vezes por porte de drogas, briga com gravadoras, lança sua guerrilha vendendo CDs em bancas de revista, lança nomes como B Negão e Mombojó, é ignorado pela mídia, suas canções não tocam no rádio, é hostilizado no Rock in Rio devido a sua aproximação com o samba, entra na avenida com a Mangueira, pai e mãe cometem suicídio, tem relacionamentos afetivos tumultuados até conhecer Regina, a mulher de sua vida, com quem está até hoje, etc. A história de Lobão cabe mesmo em um filme.

A linguagem do livro é, no geral, bastante coloquial, o que dá certa impressão de sermos ouvintes da narrativa e não seus leitores. Se o conteúdo de 50 anos a mil já é interessante por si só, Lobão o torna ainda mais interessante ao não se esforçar por mostrar-se sob uma perspectiva favorável. As contribuições do jornalista Claudio Tognolli, nas seções “Lobão na mídia” dão credibilidade ao que é narrado. No momento em que artistas que construíram suas carreiras no diapasão da luta pela liberdade de expressão lutam agora pela censura na produção de biografias, Lobão deixa claro que não tem nada a esconder. Afinal, ele sabe o que quer e é essa certeza que faz o lobo gritar.