sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Oh, admirável mundo novo...

O que é o homem? Para Nietzsche, é qualquer coisa que precisa ser superada. Sua filosofia prenuncia a morte do homem, de modo a dar lugar ao Übermensch. Mas – pergunto-me – não sendo mais homem, o que é, afinal, o Übermensch? É algo sem dúvida melhor, uma expressão pura da vontade de potência? É um destino que inevitavelmente a humanidade trilhará? Mas Nietzsche também prenuncia a morte de Deus. E o que há além desse conceito? Algo melhor do que Deus? Algo que deveríamos desejar? Nietzsche crê que sim, uma vez que a crença em Deus seria uma manifestação do decadente platonismo que criou a ilusão da verdade, do negativo Cristianismo que teria levado o homem a renunciar seus instintos, reduzindo-o a uma forma de niilismo. Mas o que quer que Nietzsche tenha conseguido antever, não significa de modo algum a emancipação do homem. Liberto dos grilhões da verdade, livre das amarras dos valores morais e alforriado de Deus, constrói o além do homem sua própria ilusão de liberdade, mas persiste sua latente humanidade a reclamar algo mais que o Übermensch.

Foram essas as reflexões que me assaltaram assim que concluí a leitura do romance Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (que, para minha surpresa, é neto do famoso “Buldogue de Darwin”, o biólogo inglês Thomas Henry Huxley, um dos maiores defensores da teoria da evolução, também responsável por cunhar o termo agnosticismo). Li o romance seguindo a indicação da amiga Norma Braga Venâncio, autora de A mente de Cristo – conversão e cosmovisão cristã, publicado pela editora Vida Nova. Em seu blog pessoal, acessível aqui, Norma lista alguns livros que a ajudaram a compreender nossa época, tão traspassada pela visão marxista, que, semelhantemente à filosofia do martelo de Nietzsche, promete romper com todas as estruturas estabelecidas para fazer surgir uma nova sociedade, um novo homem, sem dúvida melhor do que aquele que o antecedeu. Nietzsche e Marx: dois redentores da humanidade. Dois autores alemães que pretenderam apontar os caminhos que fariam o homem se libertar do homem e de Deus. Mas o que deixaram em seu lugar?

O romance de Huxley retrata uma sociedade futurista em que teria ocorrido a transmutação de todos os valores. O que hoje nos define como humanos é, nessa sociedade, algo odioso. Se os homens amam, importam-se com o próximo, sofrem e se angustiam diante da proximidade da morte, então tais coisas, nesse “admirável mundo novo”, estão completamente ausentes. O homem perde toda sua dignidade, reduzindo-se a um autômato, a um conglomerado de células sem muita importância. O que importa mesmo é o coletivo. E, se é assim, quando uma mera peça da engrenagem não funciona como deveria, basta substituí-la para garantir que a máquina social não entre em colapso. É isso que ocorre nos regimes totalitários que, paradoxalmente, sustentam um discurso redentor: o indivíduo não importa, daí poder ser sacrificado em nome de ideais revolucionários. Foi assim na França de Robespierre, foi assim na Rússia de Lênin.

Recentemente li nas páginas amarelas da revista Veja uma entrevista com o cantor e compositor Lobão. Ele denunciava o que chamou de “abundância da mesma opinião”. Referia-se à ideologia esquerdista, da qual não se é mais permitido discordar sem que se receba a acusação de reacionário. A esquerda, afinal, representa a revolução, a transformação da sociedade para melhor, enquanto que a reação significa a manutenção do status quo, o conformismo e a decadência. Na narrativa de Huxley, ocorre a mesma “abundância da mesma opinião”. Os homens, destituídos de sua natureza desde o nascimento, são condicionados a pensar da mesma forma. Nesse contexto, o defeituoso Bernad Marx e John, o selvagem (que, por ser selvagem, escapou do condicionamento), representam ameaças iminentes, que devem ser silenciados, desterrados e até, se preciso, eliminados. É como quem saiu da caverna e voltou para avisar aos demais que todos estavam vivendo em um mundo de sombras. Se se teme a luz do sol, é preciso garantir que ela nunca será vista, é preciso desacreditar os seus arautos ou, então, matá-los. As semelhanças com o marxismo cultural e o marxismo histórico não são meras coincidências.

O homem desde sempre almejou os prazeres sem qualquer freio moral, mas será isso de fato o melhor para si? Na sociedade imaginada por Huxley, o amor é livre, uma vez que ninguém é de ninguém e cada um pertence a todo mundo. No entanto, se relacionamentos desse tipo podem representar a garantia do gozo, também é verdade que reduzem os seres humanos a meros pedaços de carne. Perde-se o romantismo, o amor e toda a beleza. Em contrapartida, não se sofre. Uma mulher se deita com um homem, mas não constrói qualquer vínculo afetivo com ele. Na sociedade civilizada retratada no romance, a paixão é motivo de instabilidade, daí não ser estimulada de forma alguma. Um filho não chora a morte da mãe, uma vez que esta já foi destituída de seu papel. A família nada mais significa. O Estado agora a substituiu completamente.

Em todo caso, se, apesar de todas as precauções, o sofrimento advém, sempre se pode consolar com o soma, isto é, com a pílula da felicidade. O que não se pode é sofrer. Mas não seria isso ilusório? Sim, quando o homem destrói o próprio homem, a noção de verdade e Deus só pode mesmo criar para si uma ilusão de que está vivendo. E tudo nesse admirável mundo novo é, no final das contas, fuga, alienação, niilismo. Diferentes formas de aniquilamento.


quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A divina música

Este texto foi escrito ao som dos prelúdios de Charles-Valentin Alkan. Para quem não sabe, prelúdio, inicialmente um gênero musical introdutório de obras maiores como óperas, no contexto da estética romântica passou também a designar peças feitas exclusivamente para serem executadas ao piano. Um dos grandes compositores do período romântico foi Chopin, sobre o qual se produziu um excelente filme, datado de 1945, ao qual pude assistir no primeiro semestre deste ano. A song to remember (em português, À noite sonhamos), dirigido por Charles Vidor, conta a história do músico polonês e sua relação tumultuada com a romancista George Sand, adepta da estética romântica e feminista. O filme, que teve 6 indicações ao Oscar, é uma bela película, capaz de comover o espectador, sobretudo pela excelente atuação de Cornel Wilde, que encarna o protagonista. Evidentemente, a própria música de Chopin penetra na alma, provocando arrebatamentos. As melodias suaves, intercaladas de notas mais incisivas, fizeram-me capitular diante da resistência em ouvir música, a simples música, a que nos fala sem necessidade alguma de letra. E como tenho feito descobertas depois disso! O compositor francês Charles-Valentin Alkan foi uma delas. Amigo pessoal de Chopin, Alkan foi um dos maiores pianistas de sua época. Enquanto escrevo estas linhas finais, sua música, vinda do meu quarto, envolve-me e me dá a certeza de que a vida esconde, sim, grandes mistérios. Nesses últimos meses, em que meu interesse tem se voltado para a transcendência, para a compreensão de que a existência não pode encerrar-se na matéria, a chamada música erudita soa-me como uma forte evidência da existência de Deus.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

"Olhai os lírios do campo..."

Um homem ressentido por sua condição social, inconformado com as vicissitudes de sua vida, revoltado com seu passado pobre, forma-se com muito sacrifício em Medicina e acaba ascendendo socialmente por meio de um casamento sem amor. Ao conhecer o sucesso, percebe que persiste seu vazio interior, sua vida sem sentido. Procura sentido nos prazeres. Tem relações fora do casamento. Esse homem, que sucumbiu ao seu próprio egoísmo, que não conseguia enxergar o próximo, só conhece um significado mais profundo para a existência quando contempla a morte. Trata-se da morte de um verdadeiro amor, de um sentimento puro e honesto, de uma mulher de alma simples, preterida em função de seu projeto de ascensão social. Essa mulher, que o amava deveras, com quem ele aprendeu a amar, deu-lhe um filho, deu-lhe uma vida, devolveu-lhe sua própria vida, ensinou-lhe, depois de morta, por meio de cartas escritas e nunca enviadas, a olhar para as pessoas como pessoas, a não se apegar às coisas materiais. Essa é, em linhas gerais, a narrativa de Olhai os lírios do campo, romance de Érico Veríssimo, publicado pela Companhia das Letras. O título do livro é uma referência a uma passagem bíblica: “Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam; E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles.”. (Mateus 6:28-29). Evidentemente Jesus não diz aqui que os homens não devem trabalhar, como os lírios, que não trabalham nem fiam. A mensagem não é de resignação, mas um convite à simplicidade, um convite a não colocar o objetivo da vida na conquista de “tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam” (Mateus 6:19). O romance de Érico Veríssimo aponta-nos para uma realidade transcendente, para algo além da matéria, onde o homem poderá encontrar, enfim,  uma existência plena.  Tive a oportunidade de lê-lo nos primeiros meses do ano e não posso negar que a narrativa me emocionou. Olhai os lírios do campo é uma obra que me fez relembrar o que é verdadeiramente o Cristianismo.


terça-feira, 27 de agosto de 2013

"Matem a todos. Deus reconhecerá os seus."

Um dos livros que tive a oportunidade de ler neste mês de agosto, Deus reconhecerá os seus – a história secreta dos cátaros¹, da professora aposentada Maria Nazareth Alvim de Barros, mestre em língua e literatura francesa, publicado pela editora Rocco em 2007, é leitura obrigatória para quem se interessa por História da Igreja. O livro trata da Cruzada Albigense, promovida no século XIII para combater os cristãos cátaros, considerados hereges pela ortodoxia da Igreja Romana. O Catarismo prosperou no sul da França durante os séculos XI e XII, sob a conivência da nobreza local, que, se não aderia à religião cátara, não fazia qualquer esforço para combatê-la efetivamente. Em plena Idade Média, quando o poder religioso e temporal se confundiam, era o que se esperava que fosse feito.

A autora apresenta o Catarismo sob uma perspectiva bastante positiva. Os cátaros são descritos como pessoas caridosas, tolerantes e perseverantes na fé. Por pregarem um evangelho que não precisa da intermediação da Igreja, sua doutrina é, por assim dizer, anticlerical, o que, evidentemente, atingiu os brios de Roma.

É possível que, não se preocupando por expor exatamente as crenças dos cátaros, a autora tenha optado por uma linha que fatalmente levaria o leitor a ser simpático ao Catarismo. Apesar disso, ainda que houvesse algo de muito perigoso na teologia cátara, como a crença de que o corpo material é impuro e uma prisão da alma, o que os tornaria favoráveis ao suicídio (tal alegação, pelo que pude investigar, é feita apenas por autores católicos), não se pode negar o quanto a Cruzada Albigense foi uma repressão violenta aos considerados inimigos da Santa Sé. Trata-se de mais uma mancha na já muito suja ficha corrida da Igreja Católica. Diante das tentativas atuais da Igreja de reescrever a História, de modo a tornar razoáveis todas as formas de violência empregadas ao longo da Idade Média, Deus reconhecerá os seus, com sua linguagem de fácil compreensão, presta um importante serviço à construção de uma verdade sobre os fatos. Pelo menos é um ponto de partida para uma investigação histórica mais consistente.
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¹ Para entender o título do livro: na investida contra a cidade de Beziers, onde ocorreu um verdadeiro massacre da população, ao ser questionado sobre como seria possível distinguir católicos de hereges, o abade  de Citeaux respondeu: "Matem a todos. Deus reconhecerá os seus."