O que é o homem? Para Nietzsche, é qualquer coisa que
precisa ser superada. Sua filosofia prenuncia a morte do homem, de modo a
dar lugar ao Übermensch. Mas –
pergunto-me – não sendo mais homem, o que é, afinal, o Übermensch? É algo sem dúvida melhor, uma expressão pura da vontade
de potência? É um destino que inevitavelmente a humanidade trilhará? Mas Nietzsche
também prenuncia a morte de Deus. E o que há além desse conceito? Algo melhor
do que Deus? Algo que deveríamos desejar? Nietzsche crê que sim, uma vez que a
crença em Deus seria uma manifestação do decadente platonismo que criou a
ilusão da verdade, do negativo Cristianismo que teria levado o homem a
renunciar seus instintos, reduzindo-o a uma forma de niilismo. Mas o que quer
que Nietzsche tenha conseguido antever, não significa de modo algum a emancipação
do homem. Liberto dos grilhões da verdade, livre das amarras dos valores morais
e alforriado de Deus, constrói o além do homem sua própria ilusão de liberdade,
mas persiste sua latente humanidade a reclamar algo mais que o Übermensch.
Foram essas as reflexões que me assaltaram assim que concluí
a leitura do romance Admirável mundo novo,
de Aldous Huxley (que, para minha surpresa, é neto do famoso “Buldogue de
Darwin”, o biólogo inglês Thomas Henry Huxley, um dos maiores defensores da
teoria da evolução, também responsável por cunhar o termo agnosticismo). Li o
romance seguindo a indicação da amiga Norma Braga Venâncio, autora de A mente de Cristo – conversão e cosmovisão
cristã, publicado pela editora Vida Nova. Em seu blog pessoal, acessível
aqui, Norma lista alguns livros que a ajudaram a compreender nossa época, tão
traspassada pela visão marxista, que, semelhantemente à filosofia do martelo de
Nietzsche, promete romper com todas as estruturas estabelecidas para fazer
surgir uma nova sociedade, um novo homem, sem dúvida melhor do que aquele que o
antecedeu. Nietzsche e Marx: dois redentores da humanidade. Dois autores
alemães que pretenderam apontar os caminhos que fariam o homem se libertar do homem
e de Deus. Mas o que deixaram em seu lugar?
O romance de Huxley retrata uma sociedade futurista em que
teria ocorrido a transmutação de todos os valores. O que hoje nos define como
humanos é, nessa sociedade, algo odioso. Se os homens amam, importam-se com o
próximo, sofrem e se angustiam diante da proximidade da morte, então tais
coisas, nesse “admirável mundo novo”, estão completamente ausentes. O homem
perde toda sua dignidade, reduzindo-se a um autômato, a um conglomerado de
células sem muita importância. O que importa mesmo é o coletivo. E, se é assim,
quando uma mera peça da engrenagem não funciona como deveria, basta
substituí-la para garantir que a máquina social não entre em colapso. É isso
que ocorre nos regimes totalitários que, paradoxalmente, sustentam um discurso
redentor: o indivíduo não importa, daí poder ser sacrificado em nome de ideais
revolucionários. Foi assim na França de Robespierre, foi assim na Rússia de
Lênin.
Recentemente li nas páginas amarelas da revista Veja uma
entrevista com o cantor e compositor Lobão. Ele denunciava o que chamou de “abundância
da mesma opinião”. Referia-se à ideologia esquerdista, da qual não se é mais
permitido discordar sem que se receba a acusação de reacionário. A esquerda,
afinal, representa a revolução, a transformação da sociedade para melhor,
enquanto que a reação significa a manutenção do status quo, o conformismo e a decadência. Na narrativa de Huxley,
ocorre a mesma “abundância da mesma opinião”. Os homens, destituídos de sua
natureza desde o nascimento, são condicionados a pensar da mesma forma. Nesse
contexto, o defeituoso Bernad Marx e John, o selvagem (que, por ser selvagem,
escapou do condicionamento), representam ameaças iminentes, que devem ser
silenciados, desterrados e até, se preciso, eliminados. É como quem saiu da
caverna e voltou para avisar aos demais que todos estavam vivendo em um mundo
de sombras. Se se teme a luz do sol, é preciso garantir que ela nunca será
vista, é preciso desacreditar os seus arautos ou, então, matá-los. As
semelhanças com o marxismo cultural e o marxismo histórico não são meras
coincidências.
O homem desde sempre almejou os prazeres sem qualquer freio
moral, mas será isso de fato o melhor para si? Na sociedade imaginada por
Huxley, o amor é livre, uma vez que ninguém é de ninguém e cada um pertence a
todo mundo. No entanto, se relacionamentos desse tipo podem representar a
garantia do gozo, também é verdade que reduzem os seres humanos a meros pedaços
de carne. Perde-se o romantismo, o amor e toda a beleza. Em contrapartida, não
se sofre. Uma mulher se deita com um homem, mas não constrói qualquer vínculo
afetivo com ele. Na sociedade civilizada retratada no romance, a paixão é
motivo de instabilidade, daí não ser estimulada de forma alguma. Um filho não chora
a morte da mãe, uma vez que esta já foi destituída de seu papel. A família nada
mais significa. O Estado agora a substituiu completamente.
Em todo caso, se, apesar de todas as precauções, o
sofrimento advém, sempre se pode consolar com o soma, isto é, com a pílula da
felicidade. O que não se pode é sofrer. Mas não seria isso ilusório? Sim, quando
o homem destrói o próprio homem, a noção de verdade e Deus só pode mesmo criar
para si uma ilusão de que está vivendo. E tudo nesse admirável mundo novo é, no
final das contas, fuga, alienação, niilismo. Diferentes formas de
aniquilamento.