E eis que este articulista ganhou o prêmio Othoniel Menezes de Poesia, organizado pela Fundação Capitania das Artes, pelo meu livro de poemas Comigo e meus vazios, que deverá ser lançado no início de 2015. Logo eu, que sou tão relutante em aceitar o título de poeta! Não, não se trata de um caso de modéstia ou mesmo de falsa modéstia. Não é do meu feitio ficar “fazendo charme”, nem me preocupa acharem que sou presunçoso. Penso que não preciso ter escrúpulos de assumir que possuo certa habilidade com as palavras, assim como, suponho, um músico não se sente envergonhado em assumir que tem intimidade com determinado instrumento; da mesma forma como um artista plástico não esconde seu domínio sobre alguma técnica de pintura. Minha relutância em assumir-me poeta deve-se, em vez disso, ao meu modo de encarar a atividade poética. Podem me acusar de romântico, mas penso o poeta conforme o descreveu Jorge Luís Borges:
“Ninguém
é escritor das oito ao meio-dia e das duas às seis. Quem é poeta é poeta sempre
e se vê continuadamente assaltado pela poesia, assim como o pintor é assediado
pelas cores e pelas formas, assim como o músico se sente procurado pelo
estranho mundo dos sons (o mundo mais estranho das artes). O escritor deve
pensar que tudo é argila, com que fará da miserável circunstância de nossa vida
alguma coisa que possa aspirar à eternidade.”
Tive
acesso a esse texto por meio de uma declamação feita por Antônio Abujamra no
programa “Provocações”, exibido pela TV Cultura. Como se vê, Borges identifica
o poeta com um ser, em vez de um estar. É nesse sentido que afirmo: não sou
poeta. Não sou continuamente assaltado pela poesia, embora seja continuamente
tocado por ela. Explico.
Desde
o momento em que aprendi a ler, fiquei encantado com as palavras. Fui daqueles
meninos que, uma vez alfabetizado, andava na rua lendo em voz alta todos os
textos ali disponíveis: cartazes, fachadas de lojas, sinalizações de trânsito,
etc., hábito que, evidentemente, não passava despercebido pelos adultos. Diante
de meu interesse pela leitura, logo meus pais me deram acesso às Histórias em
Quadrinhos. Quando conheci esse mundo, apartei-me do mundo real. Foram horas
seguidas do dia, apenas lendo. De Maurício de Sousa a Walt Disney, de Walt
Disney aos heróis da Marvel, dos heróis da Marvel a quadrinhos mais adultos,
como os do selo Vertigo. A partir da 5ª
série (o 6º ano de hoje), mergulhei nos livros da série Vaga-lume, depois nos
da coleção Veredas. Frequentava a biblioteca infanto-juvenil Miriam Coeli, na
ocasião localizada na rua Mipibu, em Petrópolis. Foi lá que conheci autores
como Ganymedes José, Pedro Bandeira, Malba Tahan, Marcos Rey, Stela Carr,
Agatha Christie, Maria José Dupré, Júlio Verne e Arthur Conan Doyle. Só
posteriormente conheci os clássicos, e pude me apaixonar perdidamente por
Machado de Assis.
Igual
encantamento ocorreu quando lidei, pela primeira vez, com a escrita. Eu fazia a
pré-escola e adorava as minhas professoras Kátia e Dalila, as responsáveis pela
minha alfabetização. Lembro que elas confeccionavam plaquinhas com os nomes de
cada aluno, e solicitavam que copiássemos o conteúdo da nossa plaquinha no
caderno. Em casa, eu procurava repetir o mesmo exercício. Qual foi minha
alegria quando, finalmente, consegui escrever, sozinho, meu próprio nome,
Sérgio, em um papel de embrulhar pão! Quando terminei de produzir meu primeiro
autógrafo, não me contive e fui logo correndo em direção à pessoa mais
importante da minha vida para compartilhar a minha felicidade: “Olha, mãe,
consegui escrever meu nome sozinho!”.
Na
5ª série, meu professor de Português solicitou, certa vez, a produção de uma
narrativa. Eu produzi uma história envolvendo uma viagem no tempo. Não me
lembro do enredo, mas esse “conto de ficção científica” agradou muito aos meus
colegas. Apesar disso, minha experiência com a escrita se limitou, em seguida,
à produção do texto dos trabalhos escolares. Em uma época em que o
CRTL+C/CRTL+V era a cópia manuscrita dos livros didáticos e enciclopédias em
papel pautado, eu caminhava em sentido oposto: pedia sempre para ser o redator
do trabalho, pois, desse modo, garantia que o conteúdo dos livros ganharia uma
versão com as minhas palavras.
O
leitor agora compreende que meu envolvimento com a palavra escrita, seja na sua
produção ou recepção, vem de longa data. Mas tudo o que eu lia ou escrevia era
prosa. Só tive contato com a poesia tardiamente. O primeiro poeta que conheci
de fato foi Augusto dos Anjos. Fazia o último ano do Ensino Fundamental quando
ouvi pela primeira vez “Versos íntimos”. Fiquei fascinado com aquela linguagem
difícil, mas que, ao mesmo tempo, comunicava tanto! Aquela mistura de termos
científicos e escatológicos tinha um quê de rebuscado e popular. Atraiu-me também seu pessimismo e a crueza
como retratava a realidade humana.
Mas
eu só me tornei um leitor de poesia efetivamente no Ensino Médio, apesar de
ainda predominarem minhas leituras de gêneros em prosa, sobretudo os romances.
Tive acesso à linguagem poética por meio das letras de canções. Devo muito ao
meu amigo João Andrade, outrora meu professor de Português da 5ª e 8ª séries,
por essa “iniciação”. Durante minha pré-adolescência até o final da minha
adolescência eu era evangélico e só ouvia música gospel, de modo que só tive
contato com a música secular aos 17 anos de idade. Foi por meio de João que
conheci os Chicos (Buarque, César e Science), Caetano, Gil, Milton, Fagner,
Ednardo, Elomar, Xangai, etc. Nós nos reuníamos para ouvir as canções e
discutir as letras, e nos emocionávamos com tudo aquilo. Formamos, na verdade,
um grupo: eu, João e uma amiga a quem chamamos de Margot.
Depois
das letras, comecei a entrar em contato com a poesia pura, sem acompanhamento
musical. Conheci Drummond (para mim, o maior poeta brasileiro de todos os
tempos), Fernando Pessoa (o maior poeta em escala mundial), Manuel Bandeira,
Cecília Meireles, Mário Quintana, João Cabral, etc. Enfim, entrei em contato
com a poesia do próprio professor João Andrade, de quem só conhecia a prosa até
então. Por sinal, uma interessante prosa na forma de contos de realismo fantástico,
ainda não publicados. Sua poesia também foi um grande achado para mim, talvez o
mais importante, pois logo entendi que João vive e respira poesia. É poeta
verdadeiramente, conforme a descrição de Borges. Poetar é, para ele, uma
necessidade vital. Vez ou outra vou à sua casa e ele me apresenta poemas novos.
Ele está sempre a produzir. Conviver com um poeta assim foi e tem sido fonte de
grande aprendizado sobre o fazer poético. Antes de João Andrade, nunca escrevi
um único verso. Depois dele, escrevi algumas dezenas, mesmo assim, a maioria
destituída de interesse.
Como
disse antes, não sou poeta. Em vez disso, sou leitor de poesia, que se aventura
a poetar. Diferente de Borges e de João Andrade, não me vejo assaltado
continuamente pela poesia. Já tinha 18 anos quando escrevi meu primeiro poema.
Agora aos 35, sempre que termino um, penso que esse será o último, que não
conseguirei escrever mais nada. Na verdade, na maior parte do tempo, não
consigo mesmo escrever nada. Ou, quando consigo, o poema se reduz a um conteúdo
sem qualquer elaboração formal mais refinada. Acabo usando os versos como
confessionário, apesar de me esforçar para escrever poemas em que haja um
mínimo de trabalho estético com a palavra.
É
claro que não ignoro que poesia também se faz com matéria viva. Quem tiver
acesso aos meus poemas perceberá imediatamente que as mulheres são a minha
matéria viva. Meus anseios, ilusões, desilusões, encontros e desencontros
advindos de minha relação com elas aparecem em meus textos. Nesse sentido, posso
dizer que o mais importante aprendizado que pude ter com João foi a compreensão
de que não basta colocar sentimentos em versos para isso virar poesia; foi a
constatação de que essa consiste em um trabalho com a palavra, uma atividade
que exige esforço, muito mais do que uma inspiração repentina. Foi essa
percepção que me possibilitou dedicar-me a fazer experiências com as palavras.
Comigo e meus vazios é, em grande medida, fruto dessas experiências. É a João
Andrade, portanto, que dedico o prêmio que recebi.
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* Texto publicado originalmente na edição nº 9, de novembro e dezembro, da revista eletrônica Kukukaya, acessível aqui.
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