domingo, 22 de fevereiro de 2015

Quem é poeta é poeta sempre*


E eis que este articulista ganhou o prêmio Othoniel Menezes de Poesia, organizado pela Fundação Capitania das Artes, pelo meu livro de poemas Comigo e meus vazios, que deverá ser lançado no início de 2015. Logo eu, que sou tão relutante em aceitar o título de poeta! Não, não se trata de um caso de modéstia ou mesmo de falsa modéstia. Não é do meu feitio ficar “fazendo charme”, nem me preocupa acharem que sou presunçoso. Penso que não preciso ter escrúpulos de assumir que possuo certa habilidade com as palavras, assim como, suponho, um músico não se sente envergonhado em assumir que tem intimidade com determinado instrumento; da mesma forma como um artista plástico não esconde seu domínio sobre alguma técnica de pintura. Minha relutância em assumir-me poeta deve-se, em vez disso, ao meu modo de encarar a atividade poética. Podem me acusar de romântico, mas penso o poeta conforme o descreveu Jorge Luís Borges:

“Ninguém é escritor das oito ao meio-dia e das duas às seis. Quem é poeta é poeta sempre e se vê continuadamente assaltado pela poesia, assim como o pintor é assediado pelas cores e pelas formas, assim como o músico se sente procurado pelo estranho mundo dos sons (o mundo mais estranho das artes). O escritor deve pensar que tudo é argila, com que fará da miserável circunstância de nossa vida alguma coisa que possa aspirar à eternidade.”

Tive acesso a esse texto por meio de uma declamação feita por Antônio Abujamra no programa “Provocações”, exibido pela TV Cultura. Como se vê, Borges identifica o poeta com um ser, em vez de um estar. É nesse sentido que afirmo: não sou poeta. Não sou continuamente assaltado pela poesia, embora seja continuamente tocado por ela. Explico.

Desde o momento em que aprendi a ler, fiquei encantado com as palavras. Fui daqueles meninos que, uma vez alfabetizado, andava na rua lendo em voz alta todos os textos ali disponíveis: cartazes, fachadas de lojas, sinalizações de trânsito, etc., hábito que, evidentemente, não passava despercebido pelos adultos. Diante de meu interesse pela leitura, logo meus pais me deram acesso às Histórias em Quadrinhos. Quando conheci esse mundo, apartei-me do mundo real. Foram horas seguidas do dia, apenas lendo. De Maurício de Sousa a Walt Disney, de Walt Disney aos heróis da Marvel, dos heróis da Marvel a quadrinhos mais adultos, como os do selo Vertigo.  A partir da 5ª série (o 6º ano de hoje), mergulhei nos livros da série Vaga-lume, depois nos da coleção Veredas. Frequentava a biblioteca infanto-juvenil Miriam Coeli, na ocasião localizada na rua Mipibu, em Petrópolis. Foi lá que conheci autores como Ganymedes José, Pedro Bandeira, Malba Tahan, Marcos Rey, Stela Carr, Agatha Christie, Maria José Dupré, Júlio Verne e Arthur Conan Doyle. Só posteriormente conheci os clássicos, e pude me apaixonar perdidamente por Machado de Assis.

Igual encantamento ocorreu quando lidei, pela primeira vez, com a escrita. Eu fazia a pré-escola e adorava as minhas professoras Kátia e Dalila, as responsáveis pela minha alfabetização. Lembro que elas confeccionavam plaquinhas com os nomes de cada aluno, e solicitavam que copiássemos o conteúdo da nossa plaquinha no caderno. Em casa, eu procurava repetir o mesmo exercício. Qual foi minha alegria quando, finalmente, consegui escrever, sozinho, meu próprio nome, Sérgio, em um papel de embrulhar pão! Quando terminei de produzir meu primeiro autógrafo, não me contive e fui logo correndo em direção à pessoa mais importante da minha vida para compartilhar a minha felicidade: “Olha, mãe, consegui escrever meu nome sozinho!”.

Na 5ª série, meu professor de Português solicitou, certa vez, a produção de uma narrativa. Eu produzi uma história envolvendo uma viagem no tempo. Não me lembro do enredo, mas esse “conto de ficção científica” agradou muito aos meus colegas. Apesar disso, minha experiência com a escrita se limitou, em seguida, à produção do texto dos trabalhos escolares. Em uma época em que o CRTL+C/CRTL+V era a cópia manuscrita dos livros didáticos e enciclopédias em papel pautado, eu caminhava em sentido oposto: pedia sempre para ser o redator do trabalho, pois, desse modo, garantia que o conteúdo dos livros ganharia uma versão com as minhas palavras.

O leitor agora compreende que meu envolvimento com a palavra escrita, seja na sua produção ou recepção, vem de longa data. Mas tudo o que eu lia ou escrevia era prosa. Só tive contato com a poesia tardiamente. O primeiro poeta que conheci de fato foi Augusto dos Anjos. Fazia o último ano do Ensino Fundamental quando ouvi pela primeira vez “Versos íntimos”. Fiquei fascinado com aquela linguagem difícil, mas que, ao mesmo tempo, comunicava tanto! Aquela mistura de termos científicos e escatológicos tinha um quê de rebuscado e popular.  Atraiu-me também seu pessimismo e a crueza como retratava a realidade humana.

Mas eu só me tornei um leitor de poesia efetivamente no Ensino Médio, apesar de ainda predominarem minhas leituras de gêneros em prosa, sobretudo os romances. Tive acesso à linguagem poética por meio das letras de canções. Devo muito ao meu amigo João Andrade, outrora meu professor de Português da 5ª e 8ª séries, por essa “iniciação”. Durante minha pré-adolescência até o final da minha adolescência eu era evangélico e só ouvia música gospel, de modo que só tive contato com a música secular aos 17 anos de idade. Foi por meio de João que conheci os Chicos (Buarque, César e Science), Caetano, Gil, Milton, Fagner, Ednardo, Elomar, Xangai, etc. Nós nos reuníamos para ouvir as canções e discutir as letras, e nos emocionávamos com tudo aquilo. Formamos, na verdade, um grupo: eu, João e uma amiga a quem chamamos de Margot.

Depois das letras, comecei a entrar em contato com a poesia pura, sem acompanhamento musical. Conheci Drummond (para mim, o maior poeta brasileiro de todos os tempos), Fernando Pessoa (o maior poeta em escala mundial), Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Mário Quintana, João Cabral, etc. Enfim, entrei em contato com a poesia do próprio professor João Andrade, de quem só conhecia a prosa até então. Por sinal, uma interessante prosa na forma de contos de realismo fantástico, ainda não publicados. Sua poesia também foi um grande achado para mim, talvez o mais importante, pois logo entendi que João vive e respira poesia. É poeta verdadeiramente, conforme a descrição de Borges. Poetar é, para ele, uma necessidade vital. Vez ou outra vou à sua casa e ele me apresenta poemas novos. Ele está sempre a produzir. Conviver com um poeta assim foi e tem sido fonte de grande aprendizado sobre o fazer poético. Antes de João Andrade, nunca escrevi um único verso. Depois dele, escrevi algumas dezenas, mesmo assim, a maioria destituída de interesse.

Como disse antes, não sou poeta. Em vez disso, sou leitor de poesia, que se aventura a poetar. Diferente de Borges e de João Andrade, não me vejo assaltado continuamente pela poesia. Já tinha 18 anos quando escrevi meu primeiro poema. Agora aos 35, sempre que termino um, penso que esse será o último, que não conseguirei escrever mais nada. Na verdade, na maior parte do tempo, não consigo mesmo escrever nada. Ou, quando consigo, o poema se reduz a um conteúdo sem qualquer elaboração formal mais refinada. Acabo usando os versos como confessionário, apesar de me esforçar para escrever poemas em que haja um mínimo de trabalho estético com a palavra.

É claro que não ignoro que poesia também se faz com matéria viva. Quem tiver acesso aos meus poemas perceberá imediatamente que as mulheres são a minha matéria viva. Meus anseios, ilusões, desilusões, encontros e desencontros advindos de minha relação com elas aparecem em meus textos. Nesse sentido, posso dizer que o mais importante aprendizado que pude ter com João foi a compreensão de que não basta colocar sentimentos em versos para isso virar poesia; foi a constatação de que essa consiste em um trabalho com a palavra, uma atividade que exige esforço, muito mais do que uma inspiração repentina. Foi essa percepção que me possibilitou dedicar-me a fazer experiências com as palavras. Comigo e meus vazios é, em grande medida, fruto dessas experiências. É a João Andrade, portanto, que dedico o prêmio que recebi.
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* Texto publicado originalmente na edição nº 9, de novembro e dezembro, da revista eletrônica Kukukaya, acessível aqui.



quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

PROFANA COMUNHÃO


        Era feia. Juro que era feia, mas não dessas fealdades a que é possível se referir por meio de eufemismos como simpática ou engraçada. Era simplesmente feia, no sentido mais estrito da palavra. Podia-se afirmar mesmo que era a antítese da beleza, o avesso de Vênus. Que me perdoe o leitor, mas não posso ter escrúpulos de dizer a verdade. A moça nada tinha que pudesse atrair os olhares de um homem. Suas expressões eram grosseiras, seu rosto tinha uma palidez doentia. A figura esquálida, o corpo mirrado, o andar esguio. Era a própria personificação da feiura.
          No entanto, era uma mulher. Tinha pensamentos, sentimentos e desejos de mulher. Era cabeça e membros, coração e vulva. Almejava ser amada, desejada, tocada, usada. Queria muito ser usada, pois desse modo se sentiria útil, participando de algo, servindo a alguém. No mais, sentia que sua vida nada significava, que ninguém a olhava, que a vida não era bela.
          Ela não era mesmo bela, não me atraía absolutamente, mas, justamente por essa razão, senti-me atraído por essa criatura. Paradoxos da existência. Senti-me atraído porque ela era a feia, a rejeitada, a excluída. Resquícios de um Cristianismo renegado, mas não esquecido. Desejei ampará-la, ser seu protetor, mostrar-me como um ser superior, abnegado, capaz de grandes bondades. Não somos movidos apenas por sentimentos nobres, meu caro. Eu desejei usá-la, como se fosse uma coisa minha.
        Aproximamo-nos. Fui, a partir de então, seu amigo, confidente, cúmplice. Ofereci o ombro. Estendi a mão. Estiquei-me e apanhei aquela feia flor que furava o asfalto e, com uma voz fraquinha, dizia que ainda estava viva. Cheirei-a, não senti nada de especial, mas a confinei em meu jardim. Dei-lhe o direito de conviver comigo, com meus infernos.
      Ela se mostrou satisfeita com esse arranjo. Tinha a alma submissa: passou a me venerar como se eu fosse um deus, mas eu não era. Eu cultivava o mal. Um demônio morava no meu coração. Ela era feia, mas se entregava a mim como uma mulher. Gostava de obedecer. Queria me deixar no controle. Difícil resistir. A tentação era enorme. Eu era o próprio demônio. Ela era feia, mas ficava molhada, ficava com a boca molhada.
     Um dia não consegui me conter. Ela estava cada vez menor, cada vez menos. Estávamos sós. Não sei como aconteceu, mas estávamos a sós. Ela se rebaixava, me colocava em um pedestal para me adorar. Acariciava meu ego. Eu virava o diabo. Naquele momento, ela se convertia em nada; eu, no Todo-poderoso, como se a criara, como se ela dependesse de mim. Era feia, mas uma mulher que continuava a diminuir, sempre a decrescer. Uma mulher que ia se abaixando, como se fosse se curvar e me prestar reverência. Era mesmo uma mulher, e ia se abaixando, mas parou à altura da minha cintura. Então, em êxtase, olhou-me nos olhos e abriu um beatífico sorriso. Começou a desabotoar minhas calças, devagar, como se cumprisse um ritual. Foi me desnudando liturgicamente, e eu não me continha, deixava que fizesse suas revelações. De repente, abriu a boca, estava molhada, abriu como se fosse sua primeira vez, como se fosse a primeira comunhão. Segurou firme o que considerava um sagrado alimento. Com devoção, envolveu-o com a língua. Uma legião se apoderou de meu corpo. Já não pensava. Eu não estava ali, ou estava. Mas não era eu. Ela era feia, mas continuava embevecida, entregue ao seu culto a mim. Agarrava sua felicidade com as mãos, com os dentes, me segurava com força, como se eu fosse a sua salvação. Não pude me conter, fui ao céu, atingi os píncaros da glória e a criatura, que provara do meu pão, agora, satisfeita, provava do vinho. Ela se regozijava. Estava em paz consigo: já não era feia.

Sérgio Santos