“Muito
obrigado, amigo, por você ter me ouvido” – diz um dos interlocutores do diálogo
contido na letra da canção Amigo é pra
essas coisas, de Sílvio Silva Júnior e Aldir Blanc, gravada pelo MPB4 no seu
álbum de 1970. A resposta do outro é justamente a frase que intitula esse
belíssimo samba: “Amigo é pra essas coisas”. Para situar o leitor: a letra fala
de dois amigos que se reencontram após um ano sem qualquer notícia um do outro.
A cena transcorre em um bar. Os amigos bebem enquanto conversam sobre suas
venturas e desventuras ao longo desse tempo. Nesse sentido, o reencontro se dá
entre dois conhecidos, que, no entanto, não mais se reconhecem. Não compreendem
o que lhes aconteceu, e julgam, pelo inusitado e imprevisível de suas vidas,
que “nem Deus sabe o motivo”. Estão mergulhados no incessante devir de
Heráclito e lhes escapam a novidade inaugurada a cada instante. Um deles, após
um ano, envelheceu, foi abandonado pela mulher e ficou desempregado. Sua
condição, a meu ver, se assemelha à do José
de Drummond: “Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode
beber...” Sim, é o seu amigo quem lhe paga a bebida. Esse, aparentemente, teve mais
sorte: casou-se e desfruta de uma vida minimamente confortável, mas, ainda
assim, não desconheceu o sofrimento. A canção, enfim, faz duas revelações
importantes: em primeiro lugar, deixa claro que o sofrimento é universal. Em
segundo, sugere que o verdadeiro amigo é aquele capaz de ouvir, capaz de esquecer,
por um momento, de suas próprias dores, para oferecer carinho e atenção para o
outro.
Recentemente
também reencontrei um amigo, ou melhor, uma amiga, a quem não via há muito mais
que um ano. Na verdade, há quase duas décadas. Com um intervalo de tempo tão
grande, certamente as mudanças que ocorreram conosco foram muito maiores e mais
profundas que as dos amigos da canção. Reencontramo-nos em uma pizzaria: ela e
seu esposo; eu e minha esposa. Tínhamos tanto que dizer um ao outro, no entanto,
mais do que falar, queríamos mesmo era ouvir! Queríamos muito compreender o que
havia acontecido na vida de cada um. Ela queria saber sobre minha Paula; eu,
sobre seu Alessandro. Ela queria saber notícias sobre sua cidade natal; eu,
sobre a Itália para onde partiu há muitos anos. Ambos queríamos relembrar o
passado, pois entendíamos que relembrar o passado era compartilhar de uma
vivência que não poderia mais se repetir, e que, por essa razão, apenas nós
dois poderíamos compreender. O Ensino
Médio no Anísio Teixeira nos pertencia, professores e colegas com quem
convivemos nos pertenciam, aquela adolescência de meados dos anos 90 nos
pertencia inteiramente. Nesse reencontro, reiteramos o diálogo da canção: Salve,
meu amiga! Como é que vai, meu amigo? Tatiana, há quanto tempo! Sim, há tanto
tempo!
Como
já disse, o sofrimento é universal. Eu tive os meus; Tatiana, certamente, os
delas. Não creio que haja fase alguma da vida livre totalmente de dor. Penso,
aliás, que algumas dores nos ajudam a viver, nos fazem sentir que estamos
vivos. Mas, apesar dos espinhos na carne, sinto que vivo bem. Pareceu-me que minha
amiga também. É verdade que, como a letra do samba diz, minha rosa, ou seja,
minha Paula acabou comigo, mas em um sentido muito diverso do da canção. Ela, que
um dia foi apenas uma aluna como qualquer outra, acabou comigo, acabou com este
professor. Ela, que invadiu meu mundo particular, que me tirou do meu egoísmo,
que me fez esquecer quem sou, acabou, dessa forma, comigo. Minha amiga, por sua
vez, acabou com seu Alessandro, depois de tê-lo fisgado na praia. Foi na orla
que esses dois mundos se encontraram; foi lá que nasceu o amor dos dois, que
desconheceu fronteiras. Casaram-se e atravessaram o Atlântico. O resultado? Uma
linda filha, que certamente lembra muito os dois, uma vez que é “filha de
peixinhos...”. Felizmente, não tínhamos, eu e minha amiga, muito do que nos
lamentarmos nesse reencontro. Podemos dizer que tivemos mais sorte. Em vez de
lamentações, tínhamos mesmo eram muitas vivências para compartilhar! E tínhamos
tanta necessidade de ouvir! Discordo de Bandeira: as almas se comunicam, elas
se entendem sim... Amizade é coisa de alma.
É
preciso dizer que eu e minha amiga nos conhecemos religiosos. Fomos membros da
mesma igreja, uma igreja evangélica. O tempo passou. Mudamos. Eu larguei a
igreja, questionei seus dogmas, tornei-me um cético, em seguida agnóstico,
depois ateu. Hoje, apesar de resgatar minha crença em Deus, continuo descrente
nas religiões. Minha amiga também saiu da igreja, mas não sei que passos
seguiu. Ela me deu a entender que,
apesar de não adotar uma religião, procura cultivar sua espiritualidade. Nossas
trajetórias certamente são distintas, mas uma coisa temos em comum: entendemos
que a amizade, o espírito de fraternidade e o amor ao próximo não são
prerrogativas de um credo religioso. Sim, Tatiana é minha irmã.
Sérgio Santos da Silva
* Crônica originalmente publicada na revista Kukukaia, edição n.º 8, set/out de 2014, disponível aqui.