terça-feira, 12 de agosto de 2014

Somos livres para escolher?*


Sim, é verdade que o comportamento humano pode ser explicado por muitas variantes, nem sempre passíveis de serem controladas. Não sou nenhum especialista no assunto, mas é de conhecimento geral que o uso (ou abuso) de certas substâncias pode, por exemplo, tornar uma pessoa mais propensa à violência, como é o caso do álcool e de outras drogas. O consumo dessas substâncias representa, nesse caso, uma variante controlável. O indivíduo pode decidir se deseja ou não consumi-los e assumir os riscos advindos dessa decisão. Mas o que dizer de substâncias produzidas pelo próprio corpo que também seriam responsáveis por muitas mudanças comportamentais? Li ou ouvi em algum lugar que a ausência de uma substância no cérebro, o lítio, potencializa o risco de se cometer suicídio. Não sei identificar a origem da narrativa, mas já soube do caso de um estuprador que pediu para ter seus testículos extirpados, pois de outro modo não poderia evitar a prática de novos crimes. Trata-se de um caso em que o homem se coloca como refém da biologia. Esses fatos parecem sugerir que o comportamento moral do homem é fortemente influenciado por fatores alheios a sua vontade, o que seria um golpe à ideia de que nós, humanos, possuímos a prerrogativa do livre-arbítrio. Se fatores extrínsecos a mim podem determinar meu comportamento, então não posso, afinal, ter quaisquer responsabilidades sobre os meus atos.

Mas as coisas não são assim. A questão é que, na maioria dos casos, tais pressões internas e externas influenciam as escolhas humanas, mas não as determinam. Não têm poder de coação. É como uma força centrífuga, que projeta o homem para fora de seu centro, para longe de si mesmo. Mas esse movimento é contrabalanceado pela consciência moral, que funciona como uma força centrípeta, conduzindo o homem de volta a si. Parece que incorro aqui em uma simplificação, mas, excetuando-se o conteúdo mitológico, há muita verdade na antiga ideia de um anjo bom e de outro mal a tentar influenciar as nossas decisões morais. O anjo mal, no caso, é representado pelos diversos fatores que nos impelem a tomar decisões morais equivocadas. É o que o Cristianismo chama de nossa natureza humana decaída. O anjo bom é representado por nossa consciência moral.  É interessante observar que todos os homens com suas plenas faculdades têm uma consciência moral, inclusive aqueles que não acreditam na existência de uma moralidade objetiva. Quando adeptos do subjetivismo ético defendem, por exemplo, valores como tolerância e respeito à diversidade, princípios caros nesses tempos pós-modernos, não estão afirmando que se trata apenas de opiniões pessoais em relação às quais poderiam tolerar posicionamentos contrários. Uma pessoa que defendesse a intolerância e o desrespeito à diversidade não teria sua opinião tolerada nem respeitada de maneira alguma. E isso não se daria sob a alegação de que não existe uma verdade moral, mas sim, de que devemos, por exemplo, importarmo-nos com o próximo, de que não é correto infligir sofrimento a outra pessoa, ainda que, em certos casos, infligir sofrimento implique alguma vantagem pessoal e que estejamos certos de que o outro nada poderá fazer contra nós (Agir desse modo pode parecer lógico, mas não o é se a moral não tiver existência objetiva). Vejam bem: a intolerância é vista como um comportamento inadmissível até mesmo em sociedades marcadas justamente pela intolerância! Ainda nos dias de hoje, por exemplo, um muçulmano pode se sentir justificado ao matar um cristão, mas, se isso acontece, é porque ele não consegue ver no cristão seu próximo, mas um infiel, um herege, contra o qual é até recomendável lutar, haja vista ser essa a vontade de Deus (Pelo menos, ele pensa que é...). Não foi diferente com a Cristandade na Idade Média. Quando o fogo era ateado sob os pés de homens “julgados” pela Igreja como hereges, não se estava promovendo a legitimidade de queimar pessoas em praça pública. Para fazer isso, era preciso haver uma, mesmo que falsa, justificativa. Assim, nenhum homem-bomba se sente liberado moralmente para explodir seus compatriotas muçulmanos, da mesma forma que um inquisidor medieval não poderia levar à fogueira alguém a quem não fosse possível acusar de heresia. O que se pode concluir disso? Podemos concluir que, se há necessidade de justificativa para certos comportamentos, é porque esses não são indiferentes do ponto de vista moral. Pelo contrário, são percebidos como moralmente inaceitáveis.

Mas nem todos os homens têm consciência moral. Como sugeri antes, apenas têm aqueles indivíduos de posse de suas plenas faculdades morais. O exemplo mais claro de ausência de consciência moral é o psicopata, incapaz de ter sentimentos de empatia. A empatia é a capacidade de nos colocar no lugar do outro, de sentir o sofrimento que lhe é infligido como se fosse o nosso próprio sofrimento. O psicopata desconhece isso e por essa razão é capaz de matar uma pessoa sem sentir nenhum remorso depois. Para alguns, isso prova que o livre-arbítrio é uma farsa. Mas como se pode chegar a essa conclusão partindo-se do exemplo de quem, por não ter as plenas faculdades morais, não consegue distinguir o aceitável do inaceitável do ponto de vista da moralidade? Isso nada diz a respeito da existência ou não de valores morais nem corrobora a tese de que não temos livre-arbítrio. Não é porque uma pessoa é incapaz de enxergar uma dada realidade, que essa realidade não existe. O problema pode estar no sujeito, não no objeto. Algumas pessoas sofrem de miopia e outras são completamente cegas, mas as formas e cores têm existência real e podem ser vistas por todos os que têm olhos saudáveis. Da mesma forma, os valores morais são percebidos por todos que conservam saudáveis suas faculdades morais.

Voltemos ao caso do estuprador “vítima da biologia”. Ele não consegue conter sua libido e, caso não seja castrado, continuará a violar mulheres. O que dizer disso? Que não há um princípio moral válido de que mulheres não devem ser violadas? O fato de um indivíduo doente (sim, o estuprador tem sido diagnosticado como tendo um Transtorno de Personalidade Antissocial e estudos revelam um déficit no neurotransmissor serotonina, o que pode explicar, por exemplo, os atos impulsivos e a agressividade) perder o controle e agir conforme sua natureza, passando por cima de valores morais, não é argumento para sustentar a tese de que o estupro não é um comportamento moralmente errado, nem que se trata de um ato moralmente indiferente. Também é insuficiente para sustentar a tese de que o livre-arbítrio não existe. O que se pode concluir tão-somente é que uma pessoa doente (ou sob efeito de certas substâncias químicas) pode ter a sua liberdade de escolha comprometida. Nada mais.
Sérgio Santos da Silva

*Texto originalmente publicado na revista eletrônica Kukukaya, 7ª edição, de julho/agosto de 2014, disponível aqui.


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