quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Ser ou não ser: eis a questão*


O caro leitor, se leu os meus ensaios anteriores e se interessou pelo que leu, deve estar na expectativa de que eu lhe apresente, neste ou nos futuros textos, uma prova cabal, definitiva, que demonstre que Deus existe. Não a terá. E por que não? Porque o tema é de natureza filosófica e quem exige uma prova da existência de Deus quase sempre é alguém já comprometido com uma cosmovisão materialista, e que, por essa razão, sequer compreende o conceito de Deus. Outro dia um amigo me pediu que eu dissesse de que o Criador era feito. Se Ele existe de fato – raciocinava –, certamente teria alguma “substância” e esta deveria ser de alguma forma detectável e analisável pelos físicos. Simplesmente não compreendia a ideia de Deus. Eu mesmo só consegui compreendê-la quando me desliguei totalmente de meu compromisso com o materialismo. Só mesmo quando meu compromisso passou a ser apenas com a verdade, aquela, com V maiúsculo, e não a outra, “de mentirinha”, plural e pós-moderna, consegui vislumbrar um pouco de luz no fim do túnel. Por isso estou renascendo, por isso estou reaprendendo a ser. Trata-se da recriação do meu universo, a prova da existência de Deus.

Sim, o ato de criar é divino. Deus está nos começos. Para explicar isso, não posso deixar de refletir sobre um começo tão prosaico, mas tão propenso a suscitar reflexões filosóficas: 2014 começou. Começou em 1º de janeiro. E se tal é óbvio e de conhecimento geral, devo dizer que, de regra, a obviedade esconde certos mistérios. E o que é o filosofar senão espremer o óbvio até dele extrair o inusitado, o insólito? Claro, o 1º de janeiro é o começo de um novo ano, mas o começo do ano novo não existe por si. É necessário que anteceda o 1º de janeiro o 31 de dezembro e que a este anteceda o dia 30, antecedido, por sua vez, pelo dia 29, e assim por diante até o começo dos séculos. Começo? Claro, em algum momento a corda do relógio foi dada e a contagem do tempo se iniciou. O tempo passou a existir. Entender isso já é o suficiente para mim. Se o tempo passou a existir, é porque antes não existia e se não existia, é porque o que fez o tempo surgir não estava preso ao tempo.

Se o caro leitor é ateu e um ateu “com certa quilometragem” já deve estar cansado de ouvir o argumento da causa primeira em favor da existência de Deus e deve ter desconfiado que seja sobre isso que falei no parágrafo acima. Você quase acertou. Na literatura filosófica, a denominação mais usada parece ser “argumento cosmológico”, ou pelo menos é a nomenclatura preferida de teólogos. Tal argumento parece afirmar que todas as coisas têm uma causa e, sendo assim, se o mundo existe, este tem uma causa. A causa apontada invariavelmente é Deus. Sei que normalmente você objeta que se tudo tem uma causa, Deus não poderia fugir à regra, prescindindo, assim, de uma causa para si, no que lhe dou total razão. Dou-lhe razão porque não é isso que eu defendo aqui, nem acho que seja isso, no geral, que defendem teístas esclarecidos. A diferença entre o argumento que você conhece para este que exponho agora consiste na distinção entre “existir” e “passar a existir”. Não estou querendo, do fato de que hoje, por exemplo, é 1º de janeiro, inferir-lhe uma causa, embora tal inferência seja possível. Estou, em vez disso, perguntando-me como pode acontecer de passar a existir o dia 1º de janeiro. Esse é o mistério: mais espantoso do que não saber porque algo é é não saber como algo que não é passa a ser. No entanto, sabemos disto: o primeiro dia deste ano estava adormecido, em estado de potência, no último dia do ano que passou.

Entenda o que quero dizer: tudo que passa a ser tem uma causa e o nosso universo passou a ser, passou a existir. Nisso estão de acordo teólogos e cientistas. A Bíblia traz a narrativa de um Criador onipotente, onisciente e onipresente que criou do nada, tirando o ser do não-ser. A Teoria Padrão do Big Bang descreve um momento primordial em que teve origem a matéria, o tempo e o espaço. Em outras palavras, o universo. Ou seja, a matéria veio da não-matéria, o tempo do não-tempo e o espaço do não-espaço. Se é assim, que causa teria provocado a passagem do não-ser para o ser? Qual seria a causa do universo? Parece-me razoável deduzir que tal causa deva ser distinta de seu efeito, pois, do contrário, não se poderia falar em causa e efeito. Se a matéria passou a existir, sua causa necessariamente é imaterial. Trata-se de lógica simples. Se a causa fosse material, a matéria existiria antes de passar a existir, o que não faria sentido algum. O raciocínio vale para todas as demais propriedades do cosmos. Sendo assim, a causa do universo é imaterial, atemporal e não-espacial. Além disso, certamente muito poderosa, pois somente um poder muito grande proporcionaria a passagem da não-existência para a existência. Esse ser (sim, um causa impessoal não pode dar origem a uma ação criadora), por fazer algo existir, logicamente não existe como as demais coisas existentes, mas é. É sem que tenha vindo a ser. Coincidentemente todas as características do Deus bíblico criador.

Mas não pense que estou defendendo com isso a existência do Deus judaico-cristão. Não se trata disso. No entanto, defendo que judeus e cristãos têm bases concretas para acreditarem no Criador descrito na Bíblia. Não me arrisco a falar dos muçulmanos por conhecer muito pouco o Alcorão, mas suponho que estes pensam no Criador em termos semelhantes. Um ser que nunca teve começo, mas que deu origem a todos os começos. Entender isso faz a gente renascer, caro leitor, faz a gente passar a ser.

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* Ensaio publicado na revista eletrônica Kukukaya, nº 4, de janeiro de 2014, acessível aqui.

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