segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Homens e parafusos

Este texto se concretizou com certo atraso. Gostaria de tê-lo escrito quando começou a ser em mim gestado, exatamente após a leitura de 1984, de George Orwell. Infelizmente, a urgência das atividades acadêmicas e profissionais levou-me a adiar sua escrita. Não obstante isso, imbuído de um forte sentimento inaugurado pela leitura do referido romance, escrevi um poema, o qual, apesar de minhas limitações no tocante a recursos técnicos e dramáticos, ousei declamar em uma gravação caseira, que disponibilizei no Youtube. Chama-se Poema para Winston Smith, e pode ser lido no meu livro digital Ex-camas e ex-pinhos:

Sinto-me partido
Como quebrado por força da idade
Sinto-me carcomido,
Como se desgastado com o tempo
Sinto-me vencido,
Como se perdido a validade
Sinto-me erodido
Como se exposto à chuva e ao vento

Sinto-me, enfim, como animal extinto
Como se um dia tivesse sentido
Como se estivesse, tivesse partido
Na verdade, eu não me sinto.
  
No geral, escrevo poemas para sentir melhor aquilo que eu sinto. Meus versos não querem dizer coisa alguma, embora quase sempre digam alguma coisa (Pelo menos, tenho tal ilusão). O que quero dizer é que escrever é minha forma de sentir as coisas, não de me explicar. Mas, sentindo dessa forma, tenho a esperança de que o leitor consiga sentir parte do que outrora senti ao me deparar com o mundo em dado momento, ou que se torne meu cúmplice nesse tipo de contravenção, sentindo, por sua vez, algo que não fui capaz de sentir, mas que estava, de algum modo, sugerido nos meus versos. A verdade é que não sou poeta, mas um leitor de poesia. Se dou a impressão de que sou poeta, é porque tornei-me capaz de codificar, em língua portuguesa, a poesia contida no tempo e no espaço, na qual me alfabetizei.  Todos meus poemas já estão escritos. Não é sem razão que Patativa poetiza: “pra todo lado que eu óio/ vejo um verso se bulir”. Assim, li o Poema para Winston Smith nas entrelinhas do romance de Orwell e logo me vi obrigado a codificá-lo de modo diferente, a traduzi-lo (Sim, meu poemas são traduções) na forma de um texto poético. Eu não podia me furtar à tarefa de fazer vicejar tais versos, pois sentia o protagonista de 1984 sussurrar em meus ouvidos sua confissão de completa nulidade, confissão que me exigia uma forma de exteriorização. Este texto é outro modo de exteriorizar a matéria que interiorizei, a qual misturei ao meu próprio modo de pensar e de sentir.

O romance de Orwell conta a história de Winston Smith, uma peça de engrenagem que aos poucos vai se descobrindo homem, individualizando-se em um tempo de homogeneidade, tempo em que a assunção da humanidade é considerada subversão. Esse personagem se torna um contraventor justamente por se revelar capaz de sentir e pensar além do que lhe é permitido.  Inserido em uma engrenagem que o domina de forma inexorável, ele se sente sufocado. Como peça dessa engrenagem, espera-se de Smith que se desumanize de vez, pois, uma vez sendo homem, não pode jamais se restringir ao papel que lhe é imposto pelo sistema opressor. Ser homem é não aceitar a homogeneização, é transgredir essa ordem. É pensar e sentir. Um parafuso não sente nem pensa e por isso pode ser apertado sem causar problemas. Orwell retrata um tempo em que um grupo de homens, representantes de um Estado totalitário, domina todos os outros de forma tirânica. Para esses, a conquista dessa supremacia não é um meio para alcançar escusos fins. Em vez disso, o poder é um valor em si mesmo. Tem-se amor pelo poder. Sendo assim, usa-se de qualquer expediente para conservá-lo, desde a cínica manipulação da informação à repressão mais violenta. Tudo pelo prazer de apertar até não mais poder os homens-parafuso.

Ironicamente, na sociedade que o desumaniza, a função de Smith é contribuir para o projeto desumanizador do Estado. Seu trabalho consiste em reescrever continuamente a história, falsificando documentos e relatórios, de modo a fazer todos crerem que o que aconteceu de fato nunca aconteceu, sendo a memória fruto de equívoco e ilusão. Não tendo referência alguma no passado, não sabe o homem quem ele é no presente e permanece parafuso.

Mas Winston Smith, ainda que não saiba quem de fato é no presente, não deixou de ser homem, não deixou de sentir e pensar como homem, e não será por outro motivo vítima de toda sorte de violência física e psicológica perpetrada pelos detentores do poder. Smith ousa pensar que tem memória do que realmente aconteceu. Ele ousa sentir que há algo errado, que há uma teia de mentiras na qual estão todos enredados. Poderia, no entanto, haver qualquer esperança para o despertar da consciência de humanidade em Smith diante de um Estado onipresente, onisciente e onipotente, que recria o mundo a cada instante, à sua imagem e semelhança? Como lutar contra o poder de tal deus que cria e destrói a seu bel-prazer? Como escapar da vigilância de uma polícia de ideias, tal como a retratada no romance? Como fazer qualquer coisa sem ser acompanhado pela olhar inquisidor do Grande Irmão, ícone de um claro (não necessariamente esclarecido) despotismo? Ou sem ser visto por uma teletela, no grande Big Brother que é a vida em um mundo em que todos são espiões do alheio, mundo em que há, conforme disse recentemente o roqueiro Lobão, abundância da mesma opinião? 

No entanto, o romance tem alguns momentos de esperança. Smith vive o amor, o sexo furtivo, a perspectiva de construir o futuro e o desejo de lutar contra a opressão. A poesia. Tais momentos, porém, são efêmeros, como efêmera é a vida humana se comparada ao universo. Logo o inatingível Estado-deus, conhecendo os desígnios de seu coração, castiga-o severamente, assim que começa a cometer os primeiros pecados contra a ordem estabelecida. Smith é então mordido, mastigado, quebrado, triturado, deglutido e digerido pelo sistema. Quando finalmente é excretado pelo aparelho estatal, nada mais sente. Winston Smith não é mais um homem. É agora parafuso, irremediavelmente um parafuso.


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