sábado, 29 de dezembro de 2012

A espantosa credulidade do ateu


            Não, não se trata de defender aqui, como o título parece sugerir, que para ser ateu é necessário ter fé. Se você é ateu, fique tranquilo quanto a isso. Se você é religioso, perca desde já suas esperanças. Não vou afirmar tal bobagem. Embora não implique, necessariamente, a exclusão da racionalidade, a fé não é, por definição, uma atitude racional. Observe-se que ao fazer tal afirmação não estou sugerindo que os conteúdos da fé não possam ter fundamentos racionais nem que o homem de fé não seja um indivíduo racional, mas que, no ato de fé, tais fundamentos são perfeitamente dispensáveis. Isso significa que a crença pura e simples precede a tentativa de justificá-la, pelo menos como regra geral. Atitude diferente de ter fé é tomada pelo ateu, que vê, na falta de razões suficientes para crer em algo, uma razão suficiente para duvidar da existência desse algo. Essa é uma operação estritamente racional, que, diferente da fé, não pode prescindir dos fundamentos da razão, ainda que não seja garantia de chegar a conclusões corretas. Embora relevante, não é essa a questão que proponho discutir neste artigo, mas a credulidade de muitos ateus em relação ao poder que a educação formal teria na construção de uma sociedade livre de religião. É uma ideia ingênua, meus caros, uma credulidade espantosa.
            É interessante constatar que continua existindo hoje esse profundo otimismo em relação ao poder que a educação exerce sobre os homens. Acredita-se que pessoas mais esclarecidas, mais instruídas, passam a agir apenas sob a égide da razão e, por isso, tornam-se infensas aos apelos e discursos religiosos. Nessa perspectiva, uma pessoa que tivesse acesso ao conhecimento científico acumulado até agora não poderia dar ouvidos a “histórias da carochinha”, como a narrativa da criação especial encontrada no livro do Gênesis. Ledo engano. Essa visão “redentora” da ciência remonta ao Iluminismo, quando se acreditou que a razão e a ciência acabariam com os dogmas religiosos. Não acabaram. Pode-se dizer que, de certa forma, isso estava implícito nas ideias de Platão. Ou seja, ofereça a saída da caverna para todos e a maioria vai preferir ficar nas sombras.
            O fato é que a religião já nasceu e proliferou-se com vários antídotos contra os ataques que pudesse sofrer. Quando se tentou exterminá-la por meio da violência – o que é, sob qualquer aspecto, algo execrável –, criou-se o mártir. Quando se tentou combatê-la com o uso da razão – atitude louvável –, gerou-se o inquisidor. Quando detinha o poder temporal e o acesso ao conhecimento, a Igreja negou a ciência. Quando a ciência ganhou autonomia e a Igreja já não podia usar o expediente da fogueira, acabou se adaptando ao discurso científico. Em qualquer situação, a religião se adapta, sofre mutações, como o vírus da AIDS. É justamente isso que a mantém viva. Não importa se a profecia X não se cumpriu, o importante é o esclarecimento posterior: todo mundo entendeu errado. A profecia era, na verdade, outra coisa.
            Eis aqui o mais eficaz antídoto: a alegação de que a verdade é algo muito maior do que a capacidade humana de entendê-la. Sim, aí está o segredo. Isso resolve tudo. Diante de tal proposição, de que adianta apontar todas as incongruências e absurdos existentes na Bíblia, por exemplo? Em nada abalaria a fé do cristão, pois, afinal de contas, trata-se de mistérios de Deus. Por que o Altíssimo ordenou que crianças de colo fossem assassinadas? Por que não permitiu que Lúcifer cooptasse todos os anjos que pudesse e formasse um governo paralelo ao dele? Por que tem necessidade de ser adorado? Por que colocou a árvore no meio do jardim para testar Adão e Eva? Por que não se mostra simplesmente e deixa todos os ateus com a cara no chão? Responder a essas questões fica mais fácil quando se pode usar de subterfúgios como “O homem não consegue alcançar os desígnios de Deus...”
            E há sempre uma ameaça pairando no ar. Cuidado, você pode estar sendo enganado. Se brincar, o demônio engana até os eleitos. É melhor vigiar, pois quem sabe não é o demônio que está usando este articulista para fazê-lo renegar a fé? Esse é o antídoto preferido por muitos religiosos. É melhor evitar o conflito, evitar a discussão. Dessa forma, corre-se pouco risco.
            Soma-se a isso a ideia de que a religião tem uma função social, ou que, no mínimo, é um mal necessário, uma vez que pessoas estão deixando de praticar crimes, estão sendo libertas das drogas, estão se dedicando a trabalhos voluntários e aliviando o sofrimento alheio. Por mais que se mostrem os males que o discurso religioso já causou (e causa) no mundo, por mais que se citem as Cruzadas, a Santa Inquisição, as Jihads, os conflitos na Irlanda do Norte ou a violência contra homossexuais, o homem de fé sempre verá em tais exemplos, não o mal apontado, mas uma deturpação dos ensinamentos do seu Deus, ou o cumprimento de alguma profecia.
            Ademais, o alento que a religião dá ao homem é preferível à crueza do discurso ateísta. Pelo menos a maioria das pessoas prefere ser enganada e enganar-se, a encarar a possibilidade de uma existência sem propósito algum. Não se trata exatamente de desonestidade intelectual, mas da incapacidade mesmo de conceber uma realidade dessa forma. Digo isso não para que se entenda que o religioso é menos inteligente, e por isso não consegue conceber isso. Não, quero que se entenda, em vez disso, que a maioria das pessoas não suporta chegar a essa compreensão da realidade. É algo tão assustador, que mal se consegue refletir sobre essa possibilidade.
            Como se vê, são muitas as razões para desconfiar desse otimismo ateu. Quando fiz a graduação em Letras na UFRN, espantou-me que o professor de Filosofia fosse um crente pentecostal. Espantou-me ainda presenciar grupos de oração ou de estudos bíblicos funcionando em espaços acadêmicos. Conheci quem defendesse o criacionismo do design inteligente apesar de estar se formando em História! Conheci igualmente biólogos que faziam essa defesa. Como professor, frequentemente entro em embates em defesa de uma escola laica, cujo espaço não seja usado para a realização de missas ou cultos. Muitos de meus colegas, apesar de terem formação superior, são evangélicos, espíritas, devotos de Nossa Senhora de Fátima, etc. e muitas das vezes são esses os indivíduos que estão desrespeitando a laicidade do ensino público. Ou seja: o acesso ao conhecimento científico em nada alterou a crença dessas pessoas. Sequer consolidou o bom senso de distinguir as crenças pessoais dos conteúdos que devem ser ensinados na educação formal das crianças e adolescentes.
            É ingênua e equivocada a crença de que basta acender uma lâmpada para dar fim ao breu da noite. A ciência é essa mísera lâmpada. É claro, é preciso mantê-la acesa sempre, pois dela se aproximará quem desejar sair das sombras. No entanto, não se pode alimentar a ilusão de que todos se aproximarão para “apreciar a lâmpada elétrica”, conforme a canção de Tom Zé. Acontece que quando se está acostumado às trevas, o menor facho de luz é percebido como uma forma de agressão. Além disso, a escuridão é um convite para o sono e, consequentemente, para o sonho. E como é bom sonhar! A claridade, por outro lado, obriga o homem a despertar. É a vida real batendo em nossa face. E poucos são os dispostos a oferecer a outra.

Sérgio Santos da Silva

2 comentários:

  1. Belíssimo texto, Sérgio. Concordo que a religião, assim como o vírus da aids, vem se mutando e se adaptando a tudo que aparece. Só não concordo totalmente quando dizes que esse otimismo em relação ao esclarecimento é um "ledo engano". A religião pode até se adaptar e se manter viva, mas as barbaridades diminuem com o passar do tempo. Talvez ela não chegue ao fim - nem proponho tal coisa pois acreditar é confortante - porém ela ficará cada vez mais livre dos seus dogmas e as pessoas terão cada vez menos correntes que as prendem pelos pés. O que eu quero dizer é que a ciência não pode implicar na descrença - nem deve - mas ela vai aos poucos aproximando o homem do próprio homem, isso basta para termos um mundo menos religioso e mais humano (e o foco da ação está saindo do Deus e vindo ao homem).

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  2. Realmente, Sérgio... Ainda não tivera acesso a uma intervenção tão madura sobre essas questões. Você está de parabéns. Já tinha reparado e até comentado esse caráter "evolutivo" do Cristianismo. Há bastante insumo pra análise em seu texto. Você me surpreendeu.

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