domingo, 26 de março de 2017

A esquerda não é isso, meu caro!


Algumas pessoas não compreendem minha luta por ideais de esquerda. Isso porque ainda não entenderam que a esquerda não passa de ideais. Ideais que, em nome da clareza e da objetividade, declaro: jamais se concretizarão de forma plena. Explico-me: historicamente quando a esquerda surgiu, no século XVIII, na França, tratava-se de um ideal que se opunha à exploração econômica perpetrada pela nobreza e pelo clero, representados, respectivamente, pelo Primeiro e Segundo Estados, contra o restante da população, que compunha o Terceiro Estado. Ou seja, a esquerda não era nada menos que a luta do Terceiro Estado por ideais de justiça, de igualdade no pagamento de tributos e de acesso às condições mínimas de vida, o que incluía o sagrado direito ao pão de cada dia. Foi esse ideal que esteve presente na divisão dos assentos na Assembleia dos Estados Gerais, que, afinal, deu origem a essa oposição esquerda/ direita. Enquanto a direita representava a conservação do status quo, ou seja, dos privilégios de uma elite política e econômica, a esquerda representava a ruptura com o Antigo Regime e a inclusão das pessoas em uma nova ordem, com mais igualdade e justiça. É preciso que se diga que, nessa época, já havia uma incipiente elite liberal que, usando do discurso de esquerda, ascendeu ao poder e acabou por somar o poder político ao poder econômico que já detinha. Nesse momento, entenda-se, a dita esquerda já não era tão esquerda assim. Ou seja: os liberais passaram a tratar de seus próprios interesses, ao passo que relegaram o povo a segundo plano. Nesse sentido, só parte dos ideais de esquerda se concretizou. Em vez de uma sociedade justa e igualitária, a França assistiu ao Regime de Terror de Robespierre. Estava nascendo, assim, uma nova direita, que apenas se travestiu de esquerda para impor seus interesses particulares.

Quando ocorreu a revolução comunista na Rússia no início do século XX, também se verificou semelhante situação vivida pelos revolucionários franceses. Na esteira do descaso e da violência perpetradas pelo czar contra seu próprio povo, surgiu de novo uma esquerda que se opunha à manutenção dos privilégios de uma elite política que se lixava para a população. Mas, uma vez no poder, primeiros os mencheviques, depois os bolcheviques traíram os ideais de esquerda. Os mencheviques, por manterem a Rússia na Primeira Guerra, acentuando os problemas econômicos do país e a miséria da população; os bolcheviques, por instaurarem uma ditadura sanguinária, sob a liderança inicial de Lênin, seguido por Stálin. Sob a ditadura de Stálin, surgiu uma elite estatal e autoritária que em nada lembrava os ideais de esquerda que motivaram a Revolução. E assim foi na China, e assim foi no Camboja, em Cuba, etc. Em todo lugar nascia uma nova direita que intitulava a si mesma de esquerda.

Quando afirmo e reafirmo minha crença nos ideais de esquerda, portanto, remeto-me à ideia original de esquerda e não ao que comumente se entende por esquerda. A esquerda é um ideal de igualdade, de oposição a quaisquer privilégios, de qualquer natureza. É a luta contra a exploração do homem sobre o homem. Quando uma pessoa se diz de esquerda e defende ou faz o oposto disso é porque mente. Ele não é de esquerda, mas apenas faz uso de discursos de esquerda. E se o discurso e a prática não forem, igualmente, de esquerda, não tenha dúvida: estamos diante de mentirosos e hipócritas.

Por não entenderem isso é que me fazem muitas acusações contra a esquerda, e a verdade é que estão falando de tudo, menos da esquerda. Por exemplo, afirmam que na China o trabalhador é convertido em mão-de-obra barata e explorado até à exaustão. Mas quem disse que os ideais de esquerda têm qualquer relação com a China? Se um homem é explorado por outro homem, não importa o que digam a você, não estamos diante da esquerda, mas de uma direita camuflada, dissimulada, que até mesmo se acredita de esquerda, mas que nega isso o tempo inteiro por meio de palavras e ações. Isso mesmo que estejamos falando de um país ou de um partido comunista. Na Rússia – dizem-me –, homossexuais são condenados à morte. Quer dizer, cara pálida, que um russo heterossexual tem privilégios em relação a um russo homossexual? Quer prova maior de que a sociedade russa cuspiu nos ideais de esquerda? Isso não é esquerda, meu caro.

Entenda de uma vez por todas: eu não luto nem jamais vou lutar por ideais de esquerda tendo como parâmetro a realidade de qualquer país do mundo. A esquerda não é o mundo como ele é, mas como ele deve ser. E o mundo que deve ser não é o mundo como eu quero que seja, e que, querendo-o, procuro impô-lo à força. É, antes, um mundo em que se reconheça uma verdade básica: nenhum homem é superior a qualquer outro homem, e isso porque somos iguais tanto no nascimento quanto na morte. Essa é uma verdade tão evidente que posso afirmar com toda segurança: ninguém é capaz de levantar um só argumento válido para provar o contrário, isto é, a superioridade de um homem em relação ao outro. Simplesmente não existem razões para a defesa dessa imoralidade.

Talvez você me considere um ingênuo ou um tolo por pensar essas coisas. Está enganado quanto ao primeiro, pelo menos. Não tenho ingenuidade alguma. Os ideais de esquerda jamais se concretizarão de forma plena. Por eles deverei sempre lutar e também todos aqueles movidos pela mesma sede de justiça, mas jamais veremos os frutos de nossa luta plenamente desenvolvidos. Engana-se quem pensa que nego Stálin, Pol Pot, Fidel Castro, Hugo Chávez e afins para continuar com meu discurso por ideais de esquerda. Quem me acusa disso, ainda não entendeu da missa um terço. Pensam que eu vou dizer que deturparam os ideais de esquerda. Não os deturparam. Absolutamente. O que esses ditadores fizeram foi ignorar esses ideais, o que é coisa bem diferente. Se o chefe do governo cubano, por exemplo, pode sair da ilha e visitar outra nação do mundo, qualquer cidadão cubano deveria poder fazer a mesmíssima coisa, uma vez que nenhum homem é superior a outro. Se não pode, é porque em Cuba se ignoram os ideais de esquerda.

Saiba: o maior inimigo da esquerda é o discurso liberal, que, por meio de belas ficções, procura justificar a exploração do homem sobre o homem. É também o discurso conservador, que tende a conservar as discriminações de que os homens são vítimas. Esses inimigos, digo, os discursos (e não as pessoas), estão tomando todo o espaço público, contaminando mentes e corações. Diante deles, a luta é acirrada e as vitórias, sempre parciais. Como enfrentar inimigos que se valem do disfarce e da dissimulação? Como enfrentar inimigos que se infiltram até mesmo nos ditos partidos e militâncias de esquerda? A luta da esquerda contra a direita é uma luta que não tem fim, meu caro. Precisamos todos entender isso, com urgência. No entanto, mesmo assim, é uma luta necessária, uma vez que algumas batalhas podem e são vencidas. Se ainda não entendeu: o Éden é uma ilusão mítica, que nunca alcançaremos. Deixemo-lo para as ficções religiosas. O que podemos fazer é que a realidade injusta em que vivemos seja uma realidade um pouco menos injusta amanhã. Se conseguirmos isso, teremos conseguido muito. É isso o que chamo de esquerda. Nada mais.

Sérgio Santos da Silva

domingo, 19 de março de 2017

A reforma da previdência: e agora, Jacó?


De acordo com a narrativa bíblica, Jacó apaixonou-se perdidamente por Raquel e quis tê-la como esposa. Labão, o pai de sua amada, para consentir com aquela união, estipulou uma condição: Jacó deveria trabalhar 7 anos para ele, Labão, e, após esse prazo, o famoso patriarca poderia, enfim, desposar sua filha mais nova. No entanto, após ter cumprido essa condição, Jacó não teve sua merecida recompensa: em vez de Raquel, Labão o fez casar-se com sua filha mais velha, Lia, pois, segundo o costume – argumentou o pai – era necessário casar primeiro a primogênita. Se quisesse casar com Raquel, deveria Jacó trabalhar mais 7 anos. Resignado, Jacó cumpriu com mais esse prazo de trabalho, até poder, enfim, casar-se com Raquel. A narrativa termina com uma promessa de final feliz e o tema é retomado por Camões, que lhe dá um tratamento poético:

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia o pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assim negada a sua pastora,
como se não a tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
dizendo: Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida!

Os versos de Camões são belíssimos, mas, embora Jacó tenha obtido seu prêmio após 14 anos de trabalho, o poema aponta duas questões importantes:

1ª – Jacó foi enganado por seu sogro, que lhe explorou o quanto pôde;
2ª – Diante da brevidade da vida, o resultado do esforço pode não ser tão compensatório.

Por que estou relembrando essa narrativa, se este texto, conforme sinalizado pelo título, trata da Reforma da Previdência? Simples: porque ela possibilita uma analogia interessante. Imagine que você, trabalhador brasileiro, é Jacó. Nesse caso, Labão seria o governo e Raquel, a sua recompensa após anos árduos de trabalho. De acordo com o poema, o tempo de “contribuição” de Jacó foi ampliado por meio do mero arbítrio de Labão. Apesar de justificar sua medida arbitrária, é certo que Labão poderia desde o início ter esclarecido a Jacó que ele trabalharia, na verdade, 14 anos para poder casar com Raquel. Mas esse não é o modo de Labão agir. Lembre-se: Labão é o governo, e o governo não dialoga com o trabalhador. Em vez disso, explora-o, deixa-o sem opções, escraviza-o.

Podemos supor que você, o trabalhador Jacó, poderia não ter concordado com a proposta de 14 anos de trabalho, assim explicitada, mas, uma vez ludibriado, receou perder de vez sua amada Raquel, a real razão dos seus esforços, e não viu escolha: teve de resignar-se com o aumento do prazo para poder gozar as alegrias da vida ao lado do seu grande amor. Se já suportara 7 anos, poderia suportar outros 7. O amor por Raquel, afinal, é maior do que as agruras da exploração do trabalho a que tem que se submeter.

Mas o caso não é simples. Quando você, Jacó, conheceu Raquel, tinha 40 anos de idade (de acordo com a Bíblia). Com 7 anos de trabalho, de acordo com o trato inicial, desposaria sua amada aos 47 anos de idade. Com mais 7 anos de trabalho a que foi submetido, teria 54 anos quando pudesse finalmente realizar as suas bodas com Raquel. Ainda seria jovem, você deve pensar, considerando a longevidade dos tempos bíblicos. De acordo com a Bíblia, Jacó morreu aos 147 anos de idade. Mas, pensemos na possibilidade de Labão ser ainda mais cruel. Ele explicaria desde o início que a condição para você seria trabalhar 7 anos pela primogênita e mais 7 por Raquel, o que somaria um total de 14 anos de trabalhos pesados. Considerando que Jacó era pastor de ovelhas, imagine-se, então, um trabalhador rural e continuemos: após esse prazo, Labão diria para você: “meu futuro genro, entendo que você trabalhou duro em minhas terras para poder se casar com minha filha Raquel, mas só tenho duas filhas e não posso ficar agora sem nenhuma. Além disso, não posso perder um valoroso trabalhador na ativa. Você ainda é forte, ainda pode render muito mais. Estamos diante de uma situação crítica, certo? Contente-se por enquanto com Lia e trabalhe para mim mais 14 anos. Isso mesmo: trabalhe, não reclame”.

O que resta a você, diante disso? Se trabalhar para Labão mais 14 anos, só poderá casar-se com Raquel aos 68 anos, ou seja, quando tiver quase 70 anos. Apesar de as narrativas bíblicas se referirem a uma longevidade incrível, é certo que, mesmo nesse tempo, um homem de 70 anos não tinha a mesma disposição de um de 47 ou 54 anos. Quando enfim desposasse Raquel, os dois já não poderiam usufruir das alegrias do casamento que só a juventude possibilita. Se você fosse Jacó, caro trabalhador brasileiro, acharia justa essa medida labânica?

É o que vemos agora, com agravantes. Você, Jacó, trabalha a vida inteira para conquistar uma velhice digna por meio de uma aposentadoria justa, para a qual você contribui 30 (mulheres) ou 35 (homens) anos de serviço. Mas o governo, pretextando salvar o seu direito, resolve mudar as regras do jogo e você, em vez de 30 ou 35 anos, deve agora trabalhar 49 anos, se realmente deseja ficar com Raquel, ou, neste caso, com sua aposentadoria integral. Claro, se não quiser a aposentadoria integral, você deve aceitar perder Raquel e ficar apenas com Lia, a quem você não ama nem deseja. Não, não dá. Você quer Raquel. Mas, o grande problema é que a sua expectativa de vida não é bíblica. Se você começou a trabalhar aos 20 anos, só poderá se aposentar aos 69 anos, ou seja, quase 70. A expectativa de vida no Nordeste brasileiro, por exemplo, não ultrapassa os 70 anos, de acordo com dados do IBGE. Nessas condições, você, o Jacó moderno, só pode sonhar com uma terra prometida para depois da morte. Triste fim para uma narrativa que poderia terminar bem melhor, não acha? Devo dizer: nem Labão foi tão cruel com Jacó quanto o governo do Brasil em relação aos brasileiros. Na real: a sua, a nossa história, meu caro, ainda nem chegou ao fim. Ainda virá a reforma trabalhista, e você, depois disso, terá que lamber as botas de Labão. E agora, Jacó? E o que será de José?

Sérgio Santos da Silva