Algumas pessoas não compreendem minha luta por ideais de esquerda. Isso porque ainda não entenderam que a esquerda não passa de ideais. Ideais que, em nome da clareza e da objetividade, declaro: jamais se concretizarão de forma plena. Explico-me: historicamente quando a esquerda surgiu, no século XVIII, na França, tratava-se de um ideal que se opunha à exploração econômica perpetrada pela nobreza e pelo clero, representados, respectivamente, pelo Primeiro e Segundo Estados, contra o restante da população, que compunha o Terceiro Estado. Ou seja, a esquerda não era nada menos que a luta do Terceiro Estado por ideais de justiça, de igualdade no pagamento de tributos e de acesso às condições mínimas de vida, o que incluía o sagrado direito ao pão de cada dia. Foi esse ideal que esteve presente na divisão dos assentos na Assembleia dos Estados Gerais, que, afinal, deu origem a essa oposição esquerda/ direita. Enquanto a direita representava a conservação do status quo, ou seja, dos privilégios de uma elite política e econômica, a esquerda representava a ruptura com o Antigo Regime e a inclusão das pessoas em uma nova ordem, com mais igualdade e justiça. É preciso que se diga que, nessa época, já havia uma incipiente elite liberal que, usando do discurso de esquerda, ascendeu ao poder e acabou por somar o poder político ao poder econômico que já detinha. Nesse momento, entenda-se, a dita esquerda já não era tão esquerda assim. Ou seja: os liberais passaram a tratar de seus próprios interesses, ao passo que relegaram o povo a segundo plano. Nesse sentido, só parte dos ideais de esquerda se concretizou. Em vez de uma sociedade justa e igualitária, a França assistiu ao Regime de Terror de Robespierre. Estava nascendo, assim, uma nova direita, que apenas se travestiu de esquerda para impor seus interesses particulares.
Quando ocorreu a revolução
comunista na Rússia no início do século XX, também se verificou semelhante situação
vivida pelos revolucionários franceses. Na esteira do descaso e da violência
perpetradas pelo czar contra seu próprio povo, surgiu de novo uma esquerda que
se opunha à manutenção dos privilégios de uma elite política que se lixava para
a população. Mas, uma vez no poder, primeiros
os mencheviques, depois os bolcheviques traíram os ideais de esquerda. Os
mencheviques, por manterem a Rússia na Primeira Guerra, acentuando os problemas
econômicos do país e a miséria da população; os bolcheviques, por instaurarem
uma ditadura sanguinária, sob a liderança inicial de Lênin, seguido por Stálin.
Sob a ditadura de Stálin, surgiu uma elite estatal e autoritária que em nada
lembrava os ideais de esquerda que motivaram a Revolução. E assim foi na China,
e assim foi no Camboja, em Cuba, etc. Em todo lugar nascia uma nova direita que
intitulava a si mesma de esquerda.
Quando afirmo e reafirmo minha
crença nos ideais de esquerda, portanto, remeto-me à ideia original de esquerda
e não ao que comumente se entende por esquerda. A esquerda é um ideal de igualdade,
de oposição a quaisquer privilégios, de qualquer natureza. É a luta contra a
exploração do homem sobre o homem. Quando uma pessoa se diz de esquerda e
defende ou faz o oposto disso é porque mente. Ele não é de esquerda, mas apenas
faz uso de discursos de esquerda. E se o discurso e a prática não forem,
igualmente, de esquerda, não tenha dúvida: estamos diante de mentirosos e hipócritas.
Por não entenderem isso é que me
fazem muitas acusações contra a esquerda, e a verdade é que estão falando de
tudo, menos da esquerda. Por exemplo, afirmam que na China o trabalhador é
convertido em mão-de-obra barata e explorado até à exaustão. Mas quem disse que
os ideais de esquerda têm qualquer relação com a China? Se um homem é explorado
por outro homem, não importa o que digam a você, não estamos diante da
esquerda, mas de uma direita camuflada, dissimulada, que até mesmo se acredita
de esquerda, mas que nega isso o tempo inteiro por meio de palavras e ações.
Isso mesmo que estejamos falando de um país ou de um partido comunista. Na
Rússia – dizem-me –, homossexuais são condenados à morte. Quer dizer, cara
pálida, que um russo heterossexual tem privilégios em relação a um russo
homossexual? Quer prova maior de que a sociedade russa cuspiu nos ideais de
esquerda? Isso não é esquerda, meu caro.
Entenda de uma vez por todas: eu
não luto nem jamais vou lutar por ideais de esquerda tendo como parâmetro a
realidade de qualquer país do mundo. A esquerda não é o mundo como ele é, mas
como ele deve ser. E o mundo que deve ser não é o mundo como eu quero que seja,
e que, querendo-o, procuro impô-lo à força. É, antes, um mundo em que se reconheça
uma verdade básica: nenhum homem é superior a qualquer outro homem, e isso
porque somos iguais tanto no nascimento quanto na morte. Essa é uma verdade tão
evidente que posso afirmar com toda segurança: ninguém é capaz de levantar um
só argumento válido para provar o contrário, isto é, a superioridade de um
homem em relação ao outro. Simplesmente não existem razões para a defesa dessa
imoralidade.
Talvez você me considere um ingênuo
ou um tolo por pensar essas coisas. Está enganado quanto ao primeiro, pelo
menos. Não tenho ingenuidade alguma. Os ideais de esquerda jamais se
concretizarão de forma plena. Por eles deverei sempre lutar e também todos
aqueles movidos pela mesma sede de justiça, mas jamais veremos os frutos de
nossa luta plenamente desenvolvidos. Engana-se quem pensa que nego Stálin, Pol
Pot, Fidel Castro, Hugo Chávez e afins para continuar com meu discurso por
ideais de esquerda. Quem me acusa disso, ainda não entendeu da missa um terço.
Pensam que eu vou dizer que deturparam os ideais de esquerda. Não os deturparam.
Absolutamente. O que esses ditadores fizeram foi ignorar esses ideais, o que é
coisa bem diferente. Se o chefe do governo cubano, por exemplo, pode sair da
ilha e visitar outra nação do mundo, qualquer cidadão cubano deveria poder
fazer a mesmíssima coisa, uma vez que nenhum homem é superior a outro. Se não
pode, é porque em Cuba se ignoram os ideais de esquerda.
Saiba: o maior inimigo da esquerda
é o discurso liberal, que, por meio de belas ficções, procura justificar a
exploração do homem sobre o homem. É também o discurso conservador, que tende a
conservar as discriminações de que os homens são vítimas. Esses inimigos, digo,
os discursos (e não as pessoas), estão tomando todo o espaço público,
contaminando mentes e corações. Diante deles, a luta é acirrada e as vitórias,
sempre parciais. Como enfrentar inimigos que se valem do disfarce e da
dissimulação? Como enfrentar inimigos que se infiltram até mesmo nos ditos partidos
e militâncias de esquerda? A luta da esquerda contra a direita é uma luta que
não tem fim, meu caro. Precisamos todos entender isso, com urgência. No entanto,
mesmo assim, é uma luta necessária, uma vez que algumas batalhas podem e são vencidas. Se ainda não entendeu: o
Éden é uma ilusão mítica, que nunca alcançaremos. Deixemo-lo para as ficções
religiosas. O que podemos fazer é que a realidade injusta em que vivemos seja
uma realidade um pouco menos injusta amanhã. Se conseguirmos isso, teremos
conseguido muito. É isso o que chamo de esquerda. Nada mais.
Sérgio
Santos da Silva