quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Como nasce um ateu


            O homem é naturalmente crédulo. Diferente do que defende muitos de meus pares, não creio que sem a influência da família (ou da sociedade como um todo) no sentido de transmitir certas ideias religiosas às crianças, estas não desenvolveriam, por si mesmas, quaisquer ideias nesse sentido. Basta considerar que a curiosidade natural e a busca pela compreensão do mundo se esbarram em certos obstáculos instransponíveis, pelo menos aparentemente, para considerarmos a alta probabilidade de um ser humano suspeitar a existência de algo além da matéria. O fato é que a vida é marcada por tantos mistérios, há tanto que a ciência não explicou ou, talvez, jamais conseguirá explicar, que haverá sempre a brecha para que, em algum momento, alguém tenha uma “iluminação especial”, um “entendimento além dos sentidos”, um “insight”, uma “visão mística”, um “êxtase”, enfim, qualquer forma de compreensão do universo que transcenda o mundo físico. Não foi isso mesmo que teria ocorrido no mundo primitivo? O homem, diante do inexplicável, criando o divino a “sua imagem e semelhança”? O homem, espantado com as forças da natureza, concebendo um ser acima dele, mas, ao mesmo tempo, acessível, com o qual poderia manter um relacionamento, com o qual poderia, assim, negociar sua “salvação” neste mundo tão hostil? Concebendo um deus pessoal e acessível, pode o homem tentar aplacar-lhe a ira, de modo a evitar o indesejável e obter o desejável à sua sobrevivência. Não é assim que se explica, sob as lentes da Antropologia, a origem da religião? É importante que se diga que a religião surgiu na infância da humanidade, ou seja, quando o homem não poderia ser influenciado por ideias religiosas pré-existentes. Apesar disso, não faz sentido dizer que o homem primitivo tenha sido originariamente ateu, uma vez que, para sê-lo, teria primeiro que criar o conceito de Deus. Só depois poderia negá-lo.
Não creio, por essa razão, que se nasça ateu. O ateísmo, seja professado de forma afirmativa, isto é, a partir da crença de que se pode demonstrar a inexistência de um deus, seja de forma negativa, isto é, admitindo-se que não há evidências suficientes para afirmar que exista um deus, constitui-se em uma convicção. E não faz sentido sustentar que uma criança possua tal convicção. Se é verdade que um infante não afirma crer na existência de um Deus, a não ser que receba certa formação religiosa, não é menos verdade que jamais afirmará o contrário sem receber dada influência materialista de seus pais. A palavra deus ainda nada significa para ele. Constitui-se apenas em um significante, talvez nem isso. De qualquer forma, é pouco provável que um indivíduo livre de uma educação religiosa (É possível isso?) chegue à idade adulta sem nunca se perguntar, por exemplo, como o mundo surgiu, como o universo pode ser tão harmonioso (Será?), o que acontecerá após a morte, e outras questões inquietantes. Não se pode ignorar que as respostas da ciência a essas questões podem não parecer tão convincentes, ou melhor, podem nem existirem (Tudo tem que ser mesmo da sua alçada?), e, sendo assim, convenhamos, a ideia de um ser superior onipotente e criador, por definição “incompreensível à mente humana”, cria um ponto de apoio muito interessante e pode, por sua vez, parecer mais convincente. Como a curiosidade poderia subsistir diante daquilo que fornece explicação para todos os mistérios da vida, mas é, por outro lado, naturalmente incognoscível? Creio que isso explica porque, por toda a história e em todos os lugares, a crença em um deus tenha prosperado e não o contrário, mesmo entre os homens de ciência.
            Diante dessa compreensão, deixei de me incomodar com o espanto das pessoas ao confessar-me ateu. Não poderia ser de outra forma. O ateu é mesmo uma exceção à regra. A maioria dos homens são crentes. Sendo assim, é até previsível ser abordado pela seguinte indagação: “O que aconteceu para você se tornar ateu?”. A pergunta é previsível e exige um esclarecimento. Quero dedicar-me aqui a fazer tal esclarecimento. Para isso, é necessário apontar alguns passos importantes para que o leitor entenda que a assunção do ateísmo não se faz da noite para o dia. Antes disso, porém, entendo ser também necessário explicar em que sentido me denomino ateu.
            Em primeiro lugar, o ateísmo constitui-se como crença. É preciso deixar claro isso. O ateu pode até ter convicção profunda da inexistência de qualquer divindade, pode ter fortes razões para defender seu posicionamento – e tem –, pode enxergar evidências suficientes para corroborar sua visão de mundo, mas isso é muito diferente de alçar sua convicção a um conhecimento seguro, verdadeiro e irrefutável. Nesse ponto, ele não difere do teísmo. Quem crê na existência de um deus pode igualmente ter bons argumentos para sustentar sua crença – e tem –, mas não pode fazer da crença em uma divindade um conhecimento seguro como dois mais dois são quatro. Mas isso não significa que o ateísmo se baseie em fé, como muitos concluem erroneamente. A palavra fé e crença não podem ser tomadas como sinônimas. Voltarei a este ponto.
            O ateísmo, conquanto o termo sugira a negação de qualquer divindade, é, na prática, a negação de um dado deus ou deuses. Explico: nenhuma manifestação do ateísmo se dá pela negação genérica a uma divindade desconhecida, concebida apenas no campo da probabilidade. O ateu não nega, pelo menos de forma empenhada, um deus possível ou um deus que se possa deduzir da lógica. Antes, ele nega toda divindade que tenha o seu culto estabelecido. É claro que o ateu também não acredita, por exemplo, na existência de Zeus ou de Odin, divindades mais que conhecidas, embora hoje adoradores de tais personagens da mitologia grega e nórdica inexistam. No entanto, se o ateísmo abarca esses deuses antigos, o indivíduo ateu trata desses casos com certa displicência. Não é exatamente isso que tem em mente quando se denomina ateu. Ademais, a existência desses deuses não é reclamada por ninguém na atualidade. Ele não acredita ainda no chamado “deus dos filósofos”, na entidade suprema que preencheria as lacunas do conhecimento, ou o primeiro motor a que se chega “necessariamente” por meio do raciocínio. Mas tal descrença é igualmente displicente. Isso não o preocupa de forma alguma. Demonstrando-se a necessidade lógica desse “deus dos filósofos”, ainda assim persistirá ateu – ou, caso não queira incorrer em algum tipo de incoerência, acabará por se declarar agnóstico, o que, na prática, em nada abala seu ateísmo essencial.
Ocorre que esse deus concebido pela razão parece inócuo, sem relação obrigatória com a realidade concreta, sem ponto de contato com o Deus das grandes religiões monoteístas. É antes percebido pelo ateu mais como uma abstração, um corolário de uma edificação teórica muito bonita e grandiosa, mas de cuja solidez desconfia. Parece-lhe que qualquer intempérie concreta põe o edifício todo abaixo. De qualquer forma, a vaga hipótese de um deus abstrato é suficiente para que muitos demonstrem simpatia pelo agnosticismo. Apesar disso, não conheço ninguém que, declarando-se agnóstico, considere a possibilidade real da existência de um deus como Jesus, Alá ou Khrisna. Ao assumir a sua incapacidade de chegar ao conhecimento dessa matéria – a existência de um deus –, o agnóstico presume que a possibilidade de existir um ser superior que teria criado o universo é igual a de que este ser simplesmente não exista, mas de nenhuma forma ele se confunde com os deuses cultuados pelas religiões. Trata-se de um deus “a-religioso”, não revelado aos homens, tão abstrato que tenho dificuldade de encaixá-lo dentro do conceito de deus. A meu ver, o agnóstico faz tal concessão ao teísmo por certa cautela injustificada, mas não consegue fazê-lo por completo. Um agnóstico não fica “em cima do muro” quando alguém lhe pergunta, por exemplo, se Jesus é Deus. Ele não responde que existe certa possibilidade de isso ser verdade, uma vez que nada pode saber com certeza a respeito. Não é essa a sua resposta porque simplesmente ele não acredita nisso!
            Na verdade, posso dizer que, se não todos, mas quase todos os ateus se veem descritos na proposição “Não acredito que Deus exista”, certamente muito mais do que na proposição “Não acredito que um deus exista”, ainda que ele creia também na segunda sentença. O caro leitor deve convir que normalmente um ateu é colocado diante da seguinte indagação, feita com certo espanto: “Você não acredita em Deus?”. Muito mais raramente ele se vê obrigado a responder a correlata indagação: “Você não acredita em um deus?”. Mesmo em debates sobre o tema, geralmente se discute a existência de Deus e não a existência de uma divindade qualquer. Isso porque as pessoas envolvidas nessas situações descritas têm em mente certa ideia de deus, ou melhor, têm em mente certo Deus. No caso de nossa civilização ocidental, as pessoas estão tratando do deus cristão: o Jesus de Nazaré.
             Quando afirmo que sou ateu, portanto, estou afirmando que não acredito na existência de Deus, assim, com D maiúsculo, e, evidentemente, por extensão, na existência de quaisquer deuses. Eu não creio que exista um deus, sobretudo quando identifico esse deus com Jesus. Quando uso o verbo crer, quero que se entenda mesmo que o ateísmo constitui-se em uma crença. Trata-se da crença em uma proposição negativa, mas mesmo assim uma crença. Mas de modo algum isso significa que ela se sustenta em fé. É engraçado como alguns cristãos objetam que para ser ateu é necessário ter mais fé do que para se crer em Deus. Novamente percebo aqui um problema semântico. Quem faz tal afirmação não compreende que fé é uma palavra com uma aplicação muito clara e especial, pelo menos no contexto temático que estamos trabalhando neste artigo. Uma pessoa que acredita simplesmente que exista um deus não pode ser descrita como uma pessoa de fé. Quando Paulo diz que a fé é “o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não veem” (Hebreus 11:1), certamente o apóstolo não estava se referindo ao simples assentimento racional de que existe um deus que criou o universo. Se a fé é uma prova daquilo que não se vê, é certo que ela prescinde de uma explicação racional ou empírica. Isso não significa que os conteúdos da fé não tenham qualquer fundamento na razão, mas que ela subsiste ainda que tais fundamentos inexistam. Isto é, crê-se primeiro e só depois se busca a compreensão. É esse o entendimento, por exemplo, de Santo Agostinho, um dos maiores teólogos da Igreja. Agostinho cria que as assertivas bíblicas deviam ser antes aceitas por fé para só posteriormente serem analisadas à luz da razão humana. Ele dizia que cria para compreender e compreendia para crer melhor. João Escoto Erígina, filósofo e teólogo irlandês, seguindo um caminho oposto, isto é, ressaltando a primazia da razão sobre a fé, acabou por ser considerado um herege, e só escapou das violentas sanções da Igreja devido à proteção do rei franco Carlos, o Calvo. Na narrativa bíblica, o apóstolo Tomé, após ter obtido a prova empírica que precisava para sustentar sua fé, foi interpelado por Jesus: “Por que me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e creram” (João 20: 29). Nessa passagem, o evangelista João deixa claro que Jesus esperava que Tomé cresse na sua ressurreição sem a necessidade de tê-lo visto ressurreto. Dessa forma, fica evidente que a crença religiosa não depende de um movimento de justificação racional, muito embora não o invalide. Isso a torna qualitativamente distinta da crença ateísta. É possível que um cristão até veja irracionalidade na proposição do ateísmo, não obstante isso, não pode negar que o ateu “nasce” de um processo de racionalização. Não é o caso de um indivíduo ter uma experiência mágica de compreensão, algo semelhante a uma revelação, um insight, para se tornar ateu. Defendo que o ateísmo se funda inicialmente na racionalização do dogma religioso, uma vez que, no geral, o ateu passa da crença para a descrença, não iniciando já diretamente nesta. Ou seja, é um processo de questionamento, que o leva quase sempre a perceber incoerências e contradições nas “verdades reveladas”, e leva-o a afastar-se da fé.
            Este é, portanto, o primeiro passo para a assunção do ateísmo. Não me vejo por ora habilitado a falar sobre indivíduos que nasceram em uma família de ateus, mas acho pouco provável que tais indivíduos passem a vida sem se ver às voltas de questões religiosas, sem revelar qualquer crença dessa natureza. De qualquer forma, a maioria dos ateus um dia já foram teístas. Esse é um dado importante, que parece sugerir que a religiosidade representa um movimento natural, enquanto que a adesão ao ateísmo é fruto de uma racionalidade que se liberta das contingências da natureza, assim como grande parte da cultura humana representa uma fissura em relação aos instintos e inclinações naturais. Obviamente não estou dizendo que um indivíduo de fé não seja um ser racional, como muitos ateus, infelizmente, costumam referir-se ao homem religioso. Estou apenas falando de uma racionalidade que opera em sentido muito distinto. Enquanto que o ateísmo é fruto da racionalidade, não se pode dizer o mesmo da fé. Ao contrário, conforme o exposto acima, a racionalidade é, de algum modo, fruto da fé.
            Depreenda-se do que eu disse que os dogmas religiosos são aceitos por fé. O cristão aceita, por exemplo, a doutrina da Trindade sem ser capaz de compreendê-la, aceita-a primeiramente como parte dos “mistérios da fé”. Como seria possível compreender a ideia de três manifestações distintas de uma única divindade sem descambar no politeísmo? Como entender que o Pai, o Filho e o Espírito Santo constituem, afinal, um único Deus? Se a razão tivesse primazia sobre a fé, nesse ponto seria inevitável aceitar a acusação que o Islã faz ao Cristianismo; seria necessária a admissão de que a religião de Maomé, sim, distingue-se da de Cristo por pregar um monoteísmo radical. Mas a Trindade, uma vez aceita por fé, pode ser depois submetida aos escrutínios da razão. Nesse caso, porém, a racionalidade que se opera já está “domesticada”, trata-se de uma razão usada a serviço de uma verdade já estabelecida. Não se trata de questionar o dogma da Trindade, mas de explicar tal conceito, de racionalizá-lo de modo a desconstruir as “aparentes” incoerências. A ideia, no final, pode chegar a ganhar ares de uma proposição harmoniosa. E se o resultado não é esse, invariavelmente recorre-se às respostas evasivas, mas sempre válidas para o crente, como “a natureza divina não pode ser compreendida pela racionalidade humana” ou “só é possível entender as coisas espirituais com a graça de Deus, com o auxílio do Espírito Santo”.    
O homem de fé, nesse contexto, enxerga o texto sagrado de sua religião como algo “acima de qualquer suspeita”, uma vez que seria a palavra de Deus revelada aos homens. Daí o cristão aceitar como verdade tudo o que está contido na Bíblia. Mesmo as pessoas que aderem a um determinado culto após terem se submetido a determinados estudos, como acontece, por exemplo, com os adventistas e testemunhas de Jeová, já de antemão acreditam em Deus e na Bíblia. Não se faz necessário que o missionário cristão convença o seu público-alvo de que as Escrituras Hebraicas e Gregas produzidas por um povo no Oriente Médio durante a Idade do Bronze contém essencialmente o plano de salvação traçado por Deus aos homens. O que esses grupos procuram é fornecer ao já crente o que seria uma interpretação adequada do texto bíblico já aceito. Vivesse em uma cultura árabe, o crente seria apresentado a uma leitura adequada do Alcorão. Não ocorre ainda a esse indivíduo a possibilidade de questionar a fonte de onde se extrai os conteúdos da fé.
            Para mim, é inevitável fazer uma digressão neste ponto. Tenho compreendido o quão interessante é a natureza da crença, sobretudo quando ela se sustenta na fé. Tudo parece contribuir para confirmá-la. O cristão comum, por exemplo, vê em cada palavra bíblica uma verdade fundamental e, como não há um leitor isento e passivo, acaba levando para o texto muito de si mesmo, muito do que é alheio ao sentido original. Em consequência, o texto passa a ser tão polissêmico, tão carregado de sentido, que parece validar qualquer teoria que o leitor já possua de antemão. Desse modo, ele encontra na Bíblia a antevisão do Nazismo, a proposição da Teoria do Big-bang, a Física Quântica, a Lei da Gravitação Universal, a referência ao papa João Paulo II, a ideia de seres extraterrestres que teriam visitado a Terra, a previsão da 1ª guerra mundial e da AIDS, etc. Embora desconfie de sua isenção, devo considerar que nesse sentido o exegeta do texto bíblico tem razão de reclamar da interpretação livre que se faz das Escrituras. Acontece que tudo isso representa para o cristão comum um grande trunfo para mostrar ao incrédulo que a Bíblia só pode mesmo ter sido inspirada por Deus, pois, de outro modo, como explicar tantas informações científicas verdadeiras? Como explicar tantas profecias cumpridas?
            Diante de tudo isso, vê-se que os primeiros movimentos dentro de uma fé como a cristã parecem só contribuir para o fortalecimento da crença religiosa. Mas, se o indivíduo não consegue se submeter completamente a essa fé que se coloca acima da razão, se ele pretende uma compreensão profunda dos temas tratados pela religião para poder ficar em paz com sua crença, se em determinado momento da vida ele se dá conta de que muito do que aprendeu enquanto adepto de uma religião parece contradizer sua própria racionalidade, se percebe que muitos preceitos que constituem a moral cristã vão de encontro à sua própria consciência, então ele caminhará no sentido de resolver essas dificuldades. E para isso certamente procurará respostas entre as autoridades de sua Igreja, fará leitura de livros escritos por apologistas dos temas que lhe interessam naquele momento, participará a seus pares suas inquietações. É possível que depois de tudo isso esse indivíduo se dê por satisfeito e se torne um defensor mais ardoroso das verdades religiosas. Do contrário, fará seu primeiro movimento em direção à descrença.

1º passo: O questionamento do dogma religioso

            No meu caso, foi o questionamento do dogma da castidade que me proporcionou meu primeiro movimento em direção à descrença. Ainda hoje esse é um dos temas mais caros para mim. Tendo abraçado à fé protestante aos 12 anos, passei os primeiros anos como qualquer cristão sincero, demonstrando um zelo religioso inabalável. Ao entrar de vez na adolescência, porém, passei a entrar em conflito com minha fé e minha consciência. Sentindo toda a influência dos hormônios atuando no organismo, impulsionando-me em direção ao sexo, passei a enfrentar o que os cristãos chamam de “provações” ou “tentações do diabo”. Sentia mesmo, como descreve Paulo, a fraqueza da carne, sentia que não conseguia livrar-me de pensamentos sensuais, e que o meu corpo exigia, de forma imperativa, a entrega ao prazer sexual, e eu não podia com isso. Escrevo isso com plena consciência do quão estigmatizado é tal comportamento pela moral religiosa, mas, como qualquer adolescente sadio, entregava-me vez ou outra ao chamado “vício solitário”, e, por essa razão, tive de conviver durante muito tempo com crises de consciência. Pedia perdão a Deus, prometia emendar-me, mas, à primeira tentação, entregava-me novamente à prática da masturbação. Era ainda atormentado pela ideia de que poderia pecar apenas por pensamento, mas não conseguia resistir às tentações do “pecado da luxúria”, e pensava continuamente em mulheres nuas, em atos lascivos, e na prática de toda sorte de concupiscência.
            É claro que isso não é suficiente para levar ninguém à descrença. No máximo, leva à apostasia. É um grande reducionismo querer apontar a adesão ao ateísmo como uma autorização para fazer o que se tem vontade. Conheço muitas pessoas entregues a toda sorte de práticas “pecaminosas” que de modo algum abandonaram suas crenças religiosas. No geral, denominam-se “cristãos não-praticantes”, “afastados” ou “desviados”, mas nunca incrédulos. Compreendem que estão no erro, e endossam o discurso religioso. Não aderi, portanto, ao ateísmo por essa razão. Na verdade, ninguém poderia fazê-lo dessa forma, pois, embora confessasse isso com a boca, não poderia fazê-lo no seu íntimo. Posso dizer, partindo desse pressuposto, que não pertenço ao grupo dos que se apostataram, mas dos que verdadeiramente perderam a fé. A grande questão em torno do dogma da castidade é que meus conflitos interiores acabaram por fazer-me entender que eu não dispunha de qualquer razão para condenar a masturbação nem o sexo antes do casamento. Passei a não compreender porque isso era tão importante para o Criador do Universo. E não compreendendo, busquei respostas. Não é o caso de me estender mais sobre o tema neste artigo, mas afirmo peremptoriamente que até hoje não ouvi nem li qualquer argumento pelo menos razoável para sustentar que a castidade antes do casamento e a condenação à masturbação têm uma razão de ser, que são preceitos morais necessários ao homem assim como não matar e não roubar. Em vez disso, tem ficado cada vez mais claro para mim que tais preceitos são arbitrários, não proporcionando qualquer benefício ao indivíduo na sua dimensão pessoal e social. Prometo escrever um artigo sobre o tema e desenvolver com mais profundidade meu ponto de vista. O que quero destacar aqui é que o ateísmo inicia com o questionamento de um dado dogma religioso.
O interessante é que uma vez dado esse passo, é natural que se verifique a validade ou não de outros dogmas. Ao questionamento do dogma da castidade, seguiram-se, por exemplo, o questionamento da origem do mal no início dos tempos, da Trindade constituída de Pai, Filho e Espírito Santo, do sábado como sinal distintivo do povo de Deus, da inspiração divina de Ellen White, etc. (Como se vê, sou um ex-adventista do sétimo dia). Após questionar tantos dogmas, o indivíduo percebe que se está minando a fonte de onde eles são extraídos. O resultado natural é o descrédito na Bíblia como regra de fé e prática. Esse é o segundo passo em direção ao ateísmo.

2º passo: o descrédito na fonte dos conteúdos da fé

Uma vez que a Bíblia perde sua condição especial de depositário de uma verdade revelada, tudo que nela se fundamenta sofre forte abalo, especialmente o Cristianismo deixa de fazer sentido. Não obstante certas narrativas possam continuar impressionando, ainda que certas histórias se imponham como fatos históricos, mesmo que certas interpretações de livros proféticos pareçam fazer sentido, a constatação de que grandes porções da Bíblia são, sob todos os aspectos, incoerentes, causam um estrago enorme na reputação dessa coleção de livros escritos por autores “inspirados por Deus”. A constatação do absurdo da parte faz com que o todo seja negado como verdade inquestionável. A Bíblia passa a ser lida sem o olhar complacente da fé.
O mais curioso em tudo isso é que o indivíduo passa a enxergar mais claramente o que sempre leu na Bíblia, mas não dava a mínima atenção. Um exemplo disso é a narrativa de Jó. Antes visto apenas como um grande testemunho da fé de um homem diante de tantos infortúnios da vida, agora se vê o absurdo de muitas vidas ceifadas com o único propósito de provar a fé de um homem – e pior –, ação motivada por uma aposta entre Deus e Satanás! Aliás, a própria figura de Satanás passa a constituir-se em algo irracional. Um ser criado por um Deus vaidoso que não aceita concorrência! Há pelo menos dois pontos nunca explicados satisfatoriamente por nenhum apologista cristão, mesmo os mais preparados que pude conhecer: a) Como é possível Lúcifer ter qualquer ideia que o afaste de Deus? Se o mal não tem uma existência em si, como afirmam alguns teólogos, mas é, por outro lado, a privação do bem, como explicar que um dado pensamento ou ação possa afastar a criatura do Criador, o Bem Supremo? Ora, só existe escuridão porque há momentos em que falta a luz, ou porque há lugares afastados da luz, mas como seria possível Deus faltar em qualquer momento ou existir algum lugar afastado de Deus, lugar em que Ele não seja? ; b) Por que, afinal, Deus não aceitou a “transgressão” de Lúcifer? Por que Deus teria criado a possibilidade da transgressão, a ideia de erro? Não, isso não é incompatível com o livre-arbítrio. Criar a possibilidade de fazer qualquer escolha sem sofrer um castigo pela escolha feita não significa criar robôs. Significa a possibilidade de até negar-se a adoração ao Criador sem sofrer qualquer sanção por isso. Dessa forma, só serviria a Jeová quem o amasse verdadeiramente. Muitos alegam que o castigo divino é, na verdade, a consequência natural do afastamento de Deus, como se isso se assemelhasse ao apagamento da chama da vela pela privação do oxigênio. É interessante aqui é que não faz sentido algum que a lei moral de Deus seja de natureza semelhante às leis naturais. A questão é: por que Lúcifer não teria o direito de considerar-se acima do Altíssimo, se considerar-se não é sê-lo? Por que teria que ser expulso do céu por isso? É óbvio que se trata de questões densas, que eu não poderia esgotar neste artigo.

3º Passo: o acesso a explicações mais consistentes

            Some-se a tudo isso o fato de se ter acesso a informações que, pelo menos aparentemente, fornecem explicações melhores do que a “verdade revelada”, aí a consequência será a negação desse Deus que se revela. Embora o crente, no geral, seja resistente ao discurso científico que se opõe à visão bíblica, não pode negar que determinadas abordagens têm um fundamento racional muito interessante. Ele pode não se ver convencido sobre a Teoria da Evolução, por exemplo, mas não pode alegar que tal proposta para a origem do Universo não se baseia em dados empíricos. Não pode dizer que se trata de uma ideia aceita aprioristicamente por fé. Para chegar à ideia de evolução, houve, por sinal, contribuições significativas de várias áreas do conhecimento. Um bom exemplo é a Paleontologia, que forneceu a descoberta de um importante registro fóssil da vida na Terra. O apologista cristão pode apontar, nesse caso, problemas na interpretação dos dados coletados, pode denunciar erros metodológicos, mas não pode acusar o cientista de erigir sua construção argumentativa no vazio. Se há aqui dificuldades intransponíveis para aceitar-se a evolução a partir de um número limitado de ancestrais comuns, se há lacunas reais, como a origem da vida a partir de matéria abiótica, é preciso prosseguir com a discussão. Nesse sentido, os proponentes do Design Inteligente cumprem bem o seu papel. Todo esse diálogo entre evolucionistas e criacionistas é mais que saudável. Mas, apesar de ser possível a desconstrução da Teoria da Evolução, há algo fantástico na proposição do Darwinismo que acaba atraindo quem se liberta do dogma religioso: a constatação de que todo esse edifício teórico constitui-se em um esforço humano de buscar respostas por meio de dados observáveis e da interpretação desses dados. O cientista evolucionista levanta hipóteses, intui processos, faz pesquisa de campo, submete suas ideias a verificações. Em nenhum momento o evolucionismo é tomado como uma verdade a priori, que deva ser aceita de antemão sem qualquer justificação racional. É bem verdade que muita boa ciência é feita sob o modelo criacionista, mas, nesse caso, trata-se de uma ciência submetida a validar uma resposta já pronta. Dessa forma, o cientista criacionista também faz pesquisa, também vai a campo, também submete suas hipóteses a verificações, também faz descobertas, no entanto sua atividade de pesquisador já inicia com a conclusão, a qual ele se esforçará por confirmar. De qualquer forma, o ateu não tem necessariamente compromisso com a Teoria da Evolução, embora perceba nela uma proposta mais plausível do que a criação especial descrita no livro de Gênesis. Todas as críticas feitas à Teoria da Evolução somadas às explanações de alguns argumentos científicos “favoráveis” ao Criacionismo são incapazes de tornar o “Faça-se a luz” de algum modo razoável como explicação para a origem do universo e da vida. Na verdade, só confirma a cosmovisão de quem já crê no Deus bíblico Criador.
            O fato é que há uma infinidade de abordagens materialistas mais consistentes para tantos temas de algum modo ligados à fé, que a torna totalmente injustificável. Por exemplo, a ciência tem demonstrado que a masturbação, cuja discussão é aqui referida, não causa qualquer problema físico ou psicológico para o indivíduo, não implica qualquer degeneração moral e que só a ignorância e o preconceito poderiam justificar a condenação dessa prática. Ao contrário disso, masturbar-se é um ato natural e extremamente saudável. Não faz sentido, portanto, que um deus a tenha condenado, a não ser que esse deus seja um ser arbitrário que cria leis sem sentido, preceitos que prejudicam o indivíduo, em vez de beneficiá-lo, um deus que cria mandamentos absurdos só para depois exigir obediência estrita de suas criaturas. Certamente não é assim que o cristão concebe o seu deus. Esse é só um ponto, mas cito exatamente este porque se trata de um tema que marca a minha busca pessoal pela verdade.
            São diversos, porém, os avanços de uma visão mais humanista do mundo, a qual colide o tempo todo com as ideias cristãs. Refiro-me, por exemplo, às conquistas feitas pelas mulheres no campo jurídico e trabalhista, refiro-me a essas mesmas mulheres que, descritas na Bíblia como inferiores aos homens, conquistaram, com muita luta, a emancipação política e o direito de trabalhar fora, não restringindo-se aos consagrados papéis de mãe e dona de casa. Embora o cristão normalmente procure livrar o texto bíblico da pecha de endossar o preconceito contra a mulher, apresentando o que entende como uma interpretação mais adequada e contextualizada das Escrituras, ele não negará que a Bíblia faz a mulher surgir a partir do homem, numa nítida inversão de papéis, não negará também que Deus a criou depois do homem com o claro propósito de ser-lhe uma auxiliadora, como se encontra no Gênesis, e que esta foi o primeiro espécime humano a cair em pecado. Tudo isso é bastante significativo, não?
Refiro-me também a conquistas dos homossexuais, cuja prática sexual é condenada de forma incisiva tanto no Velho quanto no Novo Testamento. No entanto, os argumentos contra a prática da homossexualidade são tão frágeis que facilmente são refutados um a um. Não há uma explicação racional para esta ser uma prática abominável aos olhos do Criador do universo. Apelar para a desintegração da família, a depravação moral, à incompatibilidade biológica e à esterilidade da relação é tergiversar sobre o assunto, é ficar ingenuamente na superfície da questão, sem estabelecer qualquer relação com a realidade concreta do convívio em sociedade. Qualquer confronto com a realidade faz cair por terra essas questiúnculas levantadas pelo moralismo cristão. Diferente disso, a homossexualidade precisa ser compreendida como uma manifestação da sexualidade humana tão normal quanto a heterossexualidade (ou mesmo a bissexualidade), pois assim é do ponto de vista científico, mesmo que não se saiba ainda exatamente o que determina a orientação sexual das pessoas. O que se sabe certamente é que a homossexualidade não representa qualquer patologia de ordem física ou mental e que mesmo animais são observados em práticas homossexuais. Portanto, não é de modo algum plausível a ideia de que se trata de um comportamento aprendido ou de uma escolha individual. Sem dúvida, aceitar isso sem preconceito representa uma evolução da sociedade no sentido de arrefecer animosidades e promover o respeito à diversidade. Isso possibilitaria a compreensão da dimensão do que significa conceder direitos civis aos homossexuais, respeitá-los como seres humanos iguais a qualquer outro e não ser complacente com o crime de homofobia.
Novamente preciso dizer que tais pontos são apenas citados aqui, mas cada um deles pode ser estendido em um novo artigo. O que fica claro é que o indivíduo que uma vez questionou os dogmas da fé, que uma vez questionou a fonte de tais dogmas, que uma vez pôs em xeque o próprio Deus contido na fonte, agora percebe que há diversas possibilidades de compreender o mundo com alguma coerência, com certa razoabilidade, sem se submeter a explicações prontas e repletas de absurdos, que só com muito malabarismo linguístico conseguem revelar alguma razoabilidade. Agora o indivíduo pode pensar com uma liberdade que não tinha antes, pois, dentro da anterior perspectiva de fé, tinha que investir muita energia e esforços para pôr a termo o hercúleo trabalho de justificar o que muitas vezes era injustificável. Ele passa a perceber que a verdade não é prerrogativa de um grupo de pessoas que tiveram um acesso especial a ela, não é ainda algo que se possa alcançar de uma vez só, por inteiro, condensada em um livro, ou personificada em uma divindade. E assim nasce o ateu.
Sérgio Santos da Silva

3 comentários:

  1. Muito bom o seu texto. De fato, o ateísmo é uma crença, como você demonstrou aqui. Só corrigindo: existem sim, adoradores de divindades nórdicas, gregas e egípcias. São o que a maioria conhece como Wicca ou paganismo. Esta religião se divide em vários segmentos, cada um adorando um panteão diferente. São os chamados bruxos modernos, pessoas que cultuam divindades que representam aspectos da natureza e comportamentos humanos. Porém não se deve chamar todos esses bruxos de "Wicca", pois esta é apenas uma divisão do neo-paganismo (que se não me engano,cultuam divindades celtas). Pessoas que são desta religião são médiuns pois precisam falar com os deuses e com os espíritos da natureza, inclusive incorporando-os. Muitos não dizem que são dessa religião por medo de serem ridicularizados pela sociedade, inclusive já foram feitas passeatas desses grupos no Rio de Janeiro, lutando pela liberdade religiosa. Andei lendo sobre estas religiões e falando com pessoas que a seguem, inclusive por respeito a elas, deixei de usar o termo "mitologia".

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    1. Confesso minha ignorância sobre os "Wicca", mas agradeço muito essa informação que compartilha comigo e com os leitores deste blog. Em texto futuro, pretendo fazer tal retificação do que eu afirmei aqui. Muito obrigado por sua contribuição e por dispor de seu tempo para ler o artigo. Um grande abraço.

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  2. De um modo geral, o texto ficou muito bom, embora desconfie que é assim que necessariamente nasce um ateu. Racionalidade, desconfiança do dogma, livre investigação e descoberta de um substituto teórico mais plausível e "saudável". Acredito sinceramente que este foi o intinerário pessoal do Dr. Sérgio Santos, mas dificilmente o foi para muitos denominados ateus que conheço. Tenho profunda simpatia e respeito pela experiência do Dr. Sérigio; contudo creio que minha experiência em direção ao teísmo acadêmico passou exatamente pelas mesmas "fases" que ele descreveu com assustadora precisão. Não questiono a validade de sua "vivência"; mas admira-me como somos semelhantes e quão semelhantes foram os caminhos percorridos. Se hoje nos encontramos em "locus" contextuais tão distintos é por razões, penso eu, alienígenas aos passos dados. Não foi uma questão de metodologia. Algo ocorreu no caminho! Também me deparei com as "questões densas", as quais "diminuíram" sua massa volumétrica ante o gélido e rigoroso escrutínio da investigação subsequente, "não domesticada", mas sincera e inquiridora. De fato, não nasci crente nem ateu e acho que teria preferido manter-se alheio a tais designações; mas foi o contato (e o confronto) com as evidências, assim como no caso do Dr. Sérgio Santos, que me fez optar. O que ele chama de "explicações mais consistentes" foi exatamente o que fui forçado a rejeitar. A diferença que ele faz entre "Fé" e "Crença" (usando limitadamente as palavras de Paulo) é irrelevante para discussão acadêmica porque ali os elementos gravitam em torno do "ontológico", não do "psicológico" ou "místico". A pergunta é pela "existência", não pela necessidade da "devoção". Aqui se esgota o debate Teísmo x Ateísmo, do ponto de vista rigorosamente lógico; embora se possa prosseguir com discussões acerca das implicações práticas oriundas daquela discussão. Mas assim entramos no debate Religiosidade x Antirreligiosidade, dimensões que, embora interligadas são, sem dúvida, distintas. Rebelião contra dogmas, conflitos da adolescência, vício solitário, ensino de Bíblia e/ou teoria da evolução não se relacionam diretamente com a questão Teísmo x Ateísmo. A pergunta pela existência de Deus é, de certo modo, autônoma. É claro que o Dr. Sérgio "ligou" tudo isso em função de sua experiência e trajetória, uma vez que tudo isso concorreu para a resposta que ele hoje têm acerca da questão ontológica. Acho que isso é válido. Dr. Sérgio pensa de modo bastante amplo, porque é um pensador tipo filósofo que vê na fragilidade das partes a subversão do todo. Eu gosto desse modo abrangente de pensar. Também acho que a asserção referente ao todo deve fazer sentido apenas à luz das partes. Ou tudo se mantém de pé, ou tudo cai. E o Dr. Sérgio, não encontrando nas partes o sentido que aponta para um Todo, resolveu rejeitá-lo. Ele o fez justificadamente? Não me constutuo juiz neste ponto. Penso que as justificativas para a transição devem ser expostas e analisadas cuidadosamente. Dr. Sérgio Santos, é claro, também pensa assim. Logo é na validade das justificativas apresentadas que devemos buscar o mérito da conclusão. E não, ao meu ver, na validade da experiência pessoal. A experiência do Dr. Sérgio está vindicada; consinto de todo coração. Resta-nos saber se o mesmo se dá no âmbito das justificativas. Agradeço ao Dr. Sérgio Santos por nos presentear com mais um texto de sua hábil e meritosa lavra. É sempre um prazer ler seus artigos bem escritos, descontraídos, honestos, irreverentes (no bom sentido), plausíveis e compreensíveis. Parabéns!

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