Do caralho! Perdoem-me o palavrão, mas se há uma função para
as palavras de baixo calão, essa função é a de intensificar os nossos
sentimentos, isto é, a de expressar uma ideia de superlativo para a qual não
encontramos, no léxico da língua, termos mais apropriados. Pelo menos eu não
encontrei melhores palavras para expressar o que foi a minha experiência de
ouvir a ópera-rock Doze flores amarelas,
do grupo Titãs, recente trabalho lançado no presente ano, dividido em 3 atos. Para
mim, foi mesmo do caralho.
Sou declaradamente um fã da banda, mas, como muitos de meus
pares, não tinha mais grandes expectativas em relação a novos lançamentos dos
assim chamados “patinhos feios” do rock nacional. Uma das bandas mais icônicas
do cenário musical paulistano, os Titãs não tinham lançado nada digno de nota
desde o 1º acústico MTV, de 1997. A banda, que atingiu o sucesso a partir da
pegada punk de discos como Cabeça
dinossauro (1986) e Jesus não tem
dentes no país dos banguelas (1987), sob forte influência do som dos Inocentes,
já havia inscrito definitivamente seu nome na história do rock brasileiro. No
entanto, quem acompanha sua trajetória ao longo dos anos, não pôde deixar de constatar, com certo desalento, seu paulatino desmonte, iniciado com a saída
de Arnaldo Antunes, em 1992. Seguida, então, da morte de Marcelo Frommer, em
2001; da saída de Nando Reis, em 2002; da de Charles Gavin, em 2010; e, mais
recentemente, do desligamento de Paulo Miklos, em 2016. Como manter grandes
expectativas em relação ao Titãs, acompanhando todo esse esfacelamento da
banda?
Não obstante tudo isso, sim, os Titãs causaram certa
surpresa em 2014, quando, depois de quase ter se transformado em um grupo de
baladinhas radiofônicas, enveredando por uma espécie de linha evolutiva de seus
trabalhos anteriores ao Cabeça Dinossauro,
ensaiaram um retorno às origens punk com o álbum Nheengatu. Apesar disso, talvez o álbum não tenha tido a repercussão
semelhante ao do disco de 1986 devido ao fato de a banda já soar como um
pastiche de si mesma. Diante de tudo isso, o que eu esperava da banda era o
eventual lançamento de algum single da estirpe de um “Epitáfio” ou de um
“Enquanto houver sol”, melodias e letras belíssimas, sem dúvida, mas nada
comparáveis à sonoridade pesada e às letras contundentes registradas nas
canções gravadas entre os anos de 1986 e 1995, e que fizeram o nome da banda.
Mas sua ópera-rock me surpreendeu de fato.
Normalmente, um projeto da envergadura de uma ópera-rock é
encampado por uma banda jovem, especialmente no seu auge criativo, e não por
uma já com décadas de estrada. No entanto, os Titãs, agora reduzidos a apenas
três integrantes da formação original (Branco Mello, Sérgio Britto e Tony
Belloto), mostraram que ainda têm energia e talento de sobra para tanto. Ao
lançarem essa obra-prima, tornaram-se, pelo menos no dizer deles, a 1ª banda
brasileira a compor uma ópera-rock, ou seja, uma história contada inteiramente
por meio de canções, à semelhança do que já fez o The Who, com o disco Tommy, de 1969 ; e o Pink Floyd, com o The Wall, de 1979. A distinção aqui,
conforme esclarece Tony Belloto em entrevista, é que as citadas bandas inglesas
extraíram a encenação a partir de discos gravados, enquanto os Titãs fizeram o
caminho inverso: foram gravando os discos ao longo da turnê de Doze flores amarelas.
Não ignoro que depois do mp3, a experiência de audição de um
disco autoral mudou radicalmente, tendendo ao consumo fragmentado e aleatório,
sem qualquer preocupação com a ideia de unidade que possa ter permeado toda a concepção
da obra. Assim, ouvem-se muitas vezes as faixas em ordem distinta da sinalizada
no álbum original, ou mesmo dele dissociadas. No
entanto, como se trata de um trabalho conceitual, penso que é de bom tom ouvir essa
ópera-rock da forma como foi concebida, isto é, dividida em 3 atos, e em
determinada sequência. Apesar de a própria banda já ter apresentado em show três
das canções que comporiam esse trabalho, sou da mesma opinião do jornalista
Luís Felipe Carneiro, que preferiu opinar sobre o novo trabalho dos Titãs só
depois de ouvi-lo na íntegra. Afinal de contas, trata-se de uma narrativa linear,
ou seja, uma história que segue o curso normal dos acontecimentos. Desse modo, sem
dúvida as canções ganham uma diferente conotação e dimensão quando inseridas
dentro do disco.
A ópera-rock é narrada por Rita Lee, cuja importância reside
no fato de situar o ouvinte na história. O espetáculo em si é assinado por Hugo
Possolo e Marcelo Rubens Paiva, e conta uma história de violência sexual contra
a mulher. No caso, três meninas (Maria A, Maria B e Maria C) estupradas por
cinco homens. Como se vê, trata-se de um tema denso, sobre o qual os próprios
Titãs confessaram não estar familiarizados até aceitarem o desafio de compor as
canções para o show. Por sinal, a parte musical, muito mais que as letras
propriamente, são o ponto alto do disco. Rock’n roll da melhor qualidade, alternando
melodias suaves com sonoridades pesadas. As letras não apresentam o lirismo
característico de um Nando Reis, nem a estranheza criativa de um Arnaldo
Antunes, mas funcionam muito bem no contexto de uma obra narrativa como é o Doze flores amarelas. Destaco a
interpretação de Sérgio Britto, que, na minha opinião, sempre foi a voz mais
bonita da banda. A meu ver, dentre os muitos vocalistas que a banda já teve, sua
voz foi a que melhor traduziu o espírito de canções suaves e reflexivas, como Epitáfio.
Com cordas orquestradas por Jaques Morelenbaum, as canções
ganharam em sofisticação, sem perder o peso do rock; apresentaram a
agressividade e a contundência do rock, sem se converterem em barulho apenas.
Do punk rock ao acústico, o disco todo é musicalmente muito bem sucedido. O
espetáculo ainda conta com a participação de três cantoras-atrizes: Corina Sabbas,
Cyntia Mendes e Yas Werneck. Além dessa novidade, Tony Belloto começa a se
arriscar como vocalista.
Não comentarei aqui nenhuma faixa em especial, mas reafirmo meu
entusiasmo diante desse novo trabalho dos Titãs. Lamento apenas não poder ir ao
teatro para assistir ao espetáculo, e ter uma melhor noção do que é essa
ópera-rock, que une música e dramaturgia. Se isso não é possível, ao menos agora,
resta-me, de qualquer forma, expressar um sincero desejo aos remanescentes
dessa fodástica banda: merda!!!
Sérgio Santos da Silva