Tenho acompanhado, com certo
interesse, os discursos das pessoas que denunciam a hipocrisia dos chamados
justiceiros sociais. Quem defende essa tal de “justiça social”, de acordo com
essas pessoas, não é apenas hipócrita, mas também contraditório, parcial,
intolerante, violento, irracional, ignorante, etc. A lista de adjetivos poderia
completar esta página. Li o livro do Rodrigo Constantino, o Esquerda Caviar,
que endossa essa visão a respeito dos que militam por mais igualdade social e menos
discriminação das minorias sociais. Segundo Constantino, seriam hipócritas que
criticam as injustiças promovidas pelo Capitalismo ao mesmo tempo em que
usufruem dos benefícios que esse mesmo sistema injusto lhes proporciona. No
interior de seu confortável apartamento localizado em uma área nobre – denunciam
– é fácil criticar as injustiças sociais.
Sem dúvida que a Esquerda
precisa fazer o tempo inteiro uma autoavaliação, precisa rever continuamente
seus erros, que não são poucos. Mas é curioso que quem faz esse tipo de crítica
o faz com certo ar de superioridade, como se se tratasse de um ser
diferenciado, sim, um ser superior moral e intelectualmente a todos os que
defendem uma posição política de esquerda. Se o esquerdista é um hipócrita, ele
é um autêntico defensor das causas que realmente importam; se o esquerdista é
parcial, ao fazer uma leitura marxista do mundo, ele tem a visão da realidade,
da verdade total e absoluta, livre de ideologias; se o esquerdista é
intolerante, ao querer impor a uma sociedade conservadora valores a ela
contrários, como a legitimação de novos tipos de formações familiares, ele é a tolerância
em pessoa, um cristão que ama o homossexual, mas abomina a homossexualidade,
como deve ser, e que defende a instituição sagrada da família. E por aí vai. Nessa
visão maniqueísta e autocomplacente, a esquerda é o mal e a direita, o bem.
Já li muitos comentários nas
redes sociais falando nas pessoas de bem em oposição a certos defensores de
tudo o que não presta. E o que é “tudo o que não presta”? Todas as ideias
progressistas que implicam algum tipo de transformação social. Nessa linha de
pensamento, se alguém propõe uma transformação da sociedade, esse sujeito só
pode ser pouco inteligente ou ter algum desvio de caráter. Claro, porque
transformar qualquer aspecto da sociedade significa aplicar certa dose de
violência no projeto de sua realização e, se a violência é evocada para
resolver qualquer problema, a causa em si já perde toda a credibilidade. Tomemos
como exemplo o que aconteceu recentemente no Espírito Santo. Para forçar o
Estado a negociar a reposição de perdas salariais acumuladas, policiais emularam
um movimento grevista, o que não é permitido na Constituição. O motim dos
policiais teve como consequência uma onda de violência na região metropolitana
de Vitória, na forma de assassinatos, assaltos, saques e estupros. É discutível
se uma categoria profissional como os policiais militares deveriam ou não poder
lutar por melhores condições salariais e de trabalho, mas o fato é que os
críticos de plantão logo condenaram essas pessoas sem procurar entender as
razões de seu movimento. Os grevistas não poderiam agir desse modo e deixar a
cidade à mercê dos bandidos. Ponto final. Se esses policiais fossem pessoas de
bem, não se comportariam dessa maneira.
As pessoas que se esmeram em
criticar o justiceiro social, o famigerado comunista (palavra que hoje pode
significar qualquer coisa), partem do pressuposto de que a única realidade
possível é a que são capazes de enxergar; as únicas ações louváveis são aquelas
que eles mesmos aprovam; a única verdade é aquela a que tiveram acesso. E, por
pensarem assim, acabam redimensionando o mundo para caber em seus esquemas
mentais. Assim, se o policial faz greve é porque recebeu a influência demoníaca do pensamento de
esquerda, que é contra a ordem e o progresso. A esquerda quer a balbúrdia, a
bandidagem solta, o caos, a destruição da nossa civilização cristã. Por isso,
ao mesmo tempo em que apoia a causa dos policiais, trabalha no sentido de
desmoralizar a polícia, transformando os policiais em bandidos e os bandidos em
vítimas, e desarmando a população, tornando-a indefesa ante a criminalidade. E a
direita, naturalmente, é o antídoto contra tudo isso, porque a direita só tem
boas intenções; na direita só há pessoas boas, honestas, ordeiras, cheirosas e bonitas
por dentro e por fora. A direita é o bem e a esquerda, o mal.
Quando o discurso é
construído a partir dessas bases, é difícil construir diálogos entre pessoas
que discordam do modo como os problemas sociais devem ser enfrentados. Quando
nossa preocupação é adjetivar o outro, é jogar a culpa no outro,
identificando-o como a serpente que induziu a mulher, que induziu o homem a
comer do fruto proibido, destruímos qualquer possibilidade de sentarmo-nos com
ele à mesa, de forma amistosa, para com ele nos confraternizar e com ele trocarmos
algumas ideias e falarmos de nossas convicções. Quando só conseguimos ver no outro
qualidades negativas ou a falta de qualidades positivas, vendo-nos a nós mesmos,
ao contrário, com bastante benevolência, perdemos a dimensão humana do outro e
a nossa também. Penso que seria um avanço se todos fôssemos capazes de dizer
com sinceridade: “entendo suas razões, apesar de discordar delas; sei de suas
boas intenções, embora acredite que você esteja equivocado; faz sentido o que defende,
mas você deixou de considerar outras questões importantes”. Partir da ideia de
que o outro também é inteligente e possui boas intenções é um bom começo.
A hipocrisia não é uma
prerrogativa da esquerda, nem da direita. Nem todos os esquerdistas pensam da
mesma maneira, e tenho certeza de que nem todos os direitistas também. Sendo
assim, quando se critica de modo genérico os ditos justiceiros sociais, a
crítica, quase sempre, revela-se infundada. Isso porque se pega o particular, o
anedótico, o pitoresco, o exótico, para criar a partir disso uma generalização,
quase sempre negativa, sobre a esquerda. Há pouco tomei contato com alguns
vídeos tratando de uma mulher branca que foi abordada por uma negra por estar
usando um turbante. A negra teria acusado a branca de apropriação cultural, uma
vez que o turbante seria um elemento simbólico da cultura negra. A mulher branca
teria, como resposta, mostrado sua careca, informado que tinha câncer, e dito que
o turbante era dela e que usava o que bem entendesse. Não tenho dúvidas de que
grande parte das pessoas que defende ideias de esquerda ficaria do lado da
mulher branca, não por ela ter câncer e isso justificar o uso do turbante por ela,
mas por entender que ninguém tem o direito de determinar o que outra pessoa
deve usar ou como deve se vestir. Outro vídeo, de uma conhecida Youtuber
conservadora, falava de uma recomendação da Associação Médica Britânica para
evitar chamar a grávida de mãe, para não desrespeitar transexuais, substituindo
a palavra pela expressão “pessoa grávida”. A Youtuber foi bastante irônica ao denunciar
a ditadura do politicamente correto que estaria sendo defendida pela esquerda,
que, para não oprimir uma minoria social, não veria problema em oprimir a
maioria composta pelas grávidas, que, naturalmente, são mulheres e gostam de
ser chamadas de mães. Meu comentário vai no mesmo sentido do anterior: conheço
muitos esquerdistas que discordariam de recomendações desse tipo.
São muitas as generalizações
que as autoproclamadas pessoas de bem fazem. Um parlamentar de esquerda cuspiu
em outro de direita, comportamento repetido por um ator esquerdista contra um
casal de “coxinhas”? É porque é assim que a esquerda é: o esquerdista quando
não tem argumentos parte para a cuspida. Uma militante esquerdista urinou e
defecou sobre a foto de um ícone da direita? Sim, a esquerda é mesmo
repugnante, escrota, mal-educada e indecente. Um grupo de feministas resolve
protestar desrespeitando imagens sagradas, cometendo sacrilégio e atentado ao
pudor? Que horror! A esquerda toda é sacana, não respeita a nada e a ninguém. Ninguém
procura saber a repercussão que essas coisas têm entre os próprios
esquerdistas. Duvido que a maioria dos que se identificam com o pensamento de
esquerda aprove todas essas coisas.
Nesse sentido, quase todas
as críticas aos esquerdistas que tenho visto nas redes sociais são semelhantes:
a esquerda é sempre alguma coisa que não a bem-intencionada e autêntica defesa
de certas ideias, de certa visão de mundo. O esquerdista critica o Capitalismo,
mas tem tênis de marca, roupa de grife, carro do ano, iPhone, etc. Isso é dito
como se o esquerdista não estivesse inserido em uma sociedade capitalista, como
se fosse possível simplesmente negar essa realidade e viver em uma bolha. De
qualquer forma, a maioria das pessoas que defende ideias de esquerda não se enquadra nesse estereótipo do boa-vida comunista. Ao contrário, são pessoas que trabalham a semana inteira, de sol a sol, para poderem pagar o aluguel, fazer a feira e pagar o cartão de crédito, ou pelo menos o valor mínimo da fatura. Além disso, insistir com esse discurso é recair na caricatura da crítica ao capitalismo: a esquerda
nunca foi contra a produção, nem contra o avanço tecnológico, mas contra a
exploração do trabalho e o enriquecimento dela decorrente; o desenvolvimento
não sustentável, que degrada o meio ambiente e cria problemas talvez
insuperáveis para as próximas gerações, e, sobretudo, contra a transformação das
pessoas em algo menos que humano. Tudo isso é discurso bonito que esconde
segundas intenções? Mas isso também não poderia ser dito de qualquer discurso,
mesmo o da direita?
A direita se vê como
asséptica, livre de pecados, sábia, verdadeira, autêntica, honesta, isenta,
inofensiva. Não é como a esquerda. Nesse diapasão, se a direita defende o
armamento da população, é porque tem preocupação com a segurança das pessoas.
Quando a esquerda, por sua vez, defende o desarmamento é porque só está
preocupada mesmo é com a segurança dos bandidos. Porque a esquerda gosta dos
bandidos, por isso defende os direitos humanos e critica certos excessos cometidos
por policiais. A direita sabe que a polícia tem mesmo é que se exceder no
combate à criminalidade, já que bandidos não tem nenhuma pena de nós. Percebem?
Não se trata de a esquerda estar errada em sua forma de pensar e a direita
certa, mas do fato de a esquerda já ser julgada de antemão como
mal-intencionada, como tendo intenções escusas.
Como superar esse tipo de juízo
formado às pressas? Como é possível estabelecer diálogos quando todas as pontes
parecem ter sido destruídas? Penso que podemos começar a reconstruir essas pontes defendendo
nossas convicções com clareza, buscando desfazer mal-entendidos e deixando
claro que a esquerda como um todo, por exemplo, tem certa visão de mundo e
certas lutas em comum, mas não se trata de um grupo homogêneo. A direita deveria agir do mesmo modo. O fato é
que o problema não está na existência de justiceiros sociais, nem de defensores
dos valores cristãos, mas de pessoas que, por se julgarem superioras, não estão
muito dispostas a enxergar nem a ouvir o outro. O que veem é sempre a sua visão
sobre o outro, o que ouvem é sempre o seu discurso sobre o outro. O outro já
foi invisibilizado e devidamente silenciado faz tempo.
Sérgio
Santos da Silva