Comecemos com uma metáfora: você mora em um pequeno município e trafega todos os dias por um percurso não pavimentado ao longo do qual seu carro atola, você sofre com a poeira levantada por outros veículos e, nos dias de chuva, formam-se inúmeras poças pelo caminho que lhe obrigam a movimentar-se em zigue-zague, mas para você é vital passar por ali. Apesar das reclamações, protestos, reportagens e abaixo-assinados feitos por moradores dessa região, os anos vão passando, os prefeitos vão se sucedendo e o problema não é resolvido. Um representante dos motoristas, o mais inflamado, acusa cada um desses prefeitos de nada fazerem por desviarem recursos destinados à pavimentação. Esse representante, tendo ficado conhecido por sua atuação política, consegue eleger-se ao executivo municipal e logo providencia a pavimentação do citado percurso. É um importante avanço, não acha?
Mas
continuemos: passado algum tempo, devido à ação das chuvas, o asfalto começa a
ceder, começam a se abrir buracos em todo o trecho da rodovia. Mesmo ciente do
problema, o novo prefeito não age para resolvê-lo. Alguns motoristas reclamam,
e começam a surgir críticas à sua gestão. Você então resolve defendê-lo.
Afinal, ele foi o único que atendeu a uma reivindicação antiga dos moradores da
região. Mas vêm à tona indícios de que o antigo representante dos motoristas
desviava recursos destinados à manutenção e recuperação de rodovias. Enquanto
isso, o asfalto vai ficando mais esburacado a cada dia. As críticas e acusações
ao prefeito se intensificam a ponto de alguns pedirem sua renúncia. E o que
você faz diante disso? Continua defendendo o prefeito. Claro, todos os
prefeitos que já passaram desviaram recursos e por que não se pediu a renúncia
destes também? Além disso, era muito mais difícil fazer o percurso no passado.
É sério que esse raciocínio parece razoável para você?
No
meu entender, quando pensamos assim já nos entregamos à acomodação política e
aderimos ao pensamento de torcida. Não nego que é natural sentir gratidão
quando somos beneficiados por algo, mas, se nos deixamos dominar por tal
sentimento, estagnamos onde nos encontramos e – pior! – passamos a aceitar
pequenos retrocessos, desde que nossa situação ainda seja melhor do que a do
passado ao qual tememos voltar. É isso que está acontecendo agora no Brasil.
Outro
ponto importante: se somos gratos ao que um governo fez (ou ainda faz), tendo
ou não consciência disso, estamos criando as condições para a sua perpetuação
no poder. No século XV Maquiavel já previa isso. Faz bastante tempo que li O
Príncipe, mas ainda lembro de algumas passagens bem interessantes, e,
principalmente, dos comentários de Napoleão Bonaparte. Alguém, no entanto,
poderá me objetar: por que devemos nos preocupar com a perpetuação no poder de
um partido como o PT, uma vez que tantos avanços sociais trouxe para o Brasil?
Pode até parecer que faz sentido o discurso de que “não se mexe em time que
está ganhando”, mas o grande problema de quem permanece muito tempo no poder é
achar que exercer o poder é naturalmente um direito seu e não o resultado de
uma contingência histórica. Ao sentir-se o dono da cadeira, o governante passa
a agir como se não devesse nada a ninguém, como se nunca antes na história
tivesse sido outra coisa senão governante. Nesse sentido, assemelha-se a um
monarca, uma vez que busca ter tudo sob seu controle, para atender aos seus
próprios interesses, sem, contudo, se submeter ao controle de ninguém. Toda vez
que defendemos o governo das acusações que a ele são feitas com o discurso da
gratidão estamos legitimando isso. Além do mais, esse discurso nos faz enxergar
apenas os avanços, impedindo-nos de enxergar qualquer retrocesso.
Infelizmente,
é isso que acontece: muitos se esmeraram em defender este governo com o
discurso da gratidão. É como se a concessão de benefícios na área social
significasse salvo-conduto para o governante agir como bem quiser. Não vou
entrar na discussão do mérito dos programas sociais lançados ou aprofundados
nos governos Lula-Dilma, mas Prouni, Pronatec, Minha casa minha vida,
Bolsa-Família, etc., ainda que representem importantes ações no combate às
desigualdades sociais, não podem ser evocados, por exemplo, como defesa contra
uma acusação de corrupção. Só é possível defender um acusado alegando ausência
de provas para incriminá-lo ou apresentando provas de sua inocência. É evidente
que as virtudes de uma pessoa não impede seus defeitos e que a prática de boas
ações não salvaguarda ninguém de, na mesma medida, praticar crimes.
Ademais,
defendo que é dever de todo cidadão mostrar-se sempre insatisfeito com o
governo, seja ele qual for. Em outras palavras, nenhum governo em exercício
deve ser defendido. Em vez disso, deve ser duramente criticado e cobrado, ainda
que seja o melhor governo que já conhecemos. No terreno da Política, a
ingratidão é a única arma do povo.