quinta-feira, 30 de junho de 2016

Olavos, Bolsonaros e o Armagedom político


Nesses dias em que o assunto predominante é Política, darei aos meus leitores mais do mesmo: este artigo versará sobre Religião. Como assim? Não estranhe: falar de uma coisa implica falar da outra. Apesar de vivermos em uma época em que Igreja e Estado se encontram divorciados, a verdade é que este não consegue tirar aquela do pensamento; e aquela não consegue apagar este do seu coração. Os dois, Religião e Estado, continuam mantendo relações, sem qualquer cuidado para “não dar bandeira”. De forma mais explícita, o Estado procura não contrariar a Igreja, haja vista ser uma amante melindrosa e temperamental, capaz de manipular os sentimentos do povo para conseguir o que quer; e a Igreja, por sua vez, procura seduzir o Estado, de modo a poder influenciá-lo a fazer tudo o que é do seu exclusivo interesse.

No meu ponto de vista, a onda conservadora que tem crescido no Brasil tem revelado como essa relação é epidérmica. A coisa é escancarada: o Estado laico deita e rola com a Igreja, cujo reino “não é deste mundo”, em plena luz do dia! Quanta sem-vergonhice! A César o que é de César? Não, de jeito nenhum! Onde já se viu cristãos seguindo a Cristo? Não, nada de cumprir seus deveres “domésticos” (isto é, civis) e deixar o Estado com ampla liberdade para agir. Os cristãos querem mesmo é ser amigos do rei, estar mancomunados com ele, protegidos por ele, isentos do dever de pagar impostos, quiçá tornando-se o próprio César!

O negócio funciona assim: o Estado laico resolve governar para todos os cidadãos: cristãos, muçulmanos, candomblecistas, agnósticos, ateus, à toas, etc. E o que faz o grupo que encabeça essa lista? Fica ofendidinho e resolve que o Estado deve governar apenas para eles. Segundo seu raciocínio, o Estado deve seguir os princípios do Cristianismo. Mas por quê? Quem esse povo pensa que é? Um exemplo simples: cristãos não aceitam que homossexuais possam desfrutar dos mesmos direitos dos demais cidadãos, pois isso seria uma afronta à religião cristã. Mas, criaturas de Deus, dar direitos aos homossexuais implica retirar direitos dos héteros? O Estado não deve ser para todos? “Mas Deus criou Adão e Eva, e não Adão e Ivo.” É o quê? Isso é sério? Ora, vão procurar o que fazer!

O pior é que a direita conservadora não é uma diferente visão política. É, antes, uma religião política, com tudo o que tem direito. Temos um profeta? Sim, Olavo de Carvalho! Evidente: esse homem iluminado conseguiu prever há mais de vinte anos o que só agora todos são capazes de enxergar: os comunistas estão comendo quietos. Sempre estiveram. Se não tomarmos cuidado, eles devorarão toda a despensa e logo logo estarão comendo a tudo e a todos. E uma Bíblia, temos? Ora, os livros do nosso profeta! Você já leu o Jardim das Aflições, capítulo 1, versículo 3? Um salvador: Jair Bolsonaro, o mitão, o homem que vai trazer o Brasil de volta à ordem e ao progresso. O homem sem pecados políticos, que pode pôr fim a toda a imundície existente hoje no Palácio do Planalto e no Congresso Nacional. Enfim, não podia faltar o Armagedon: a batalha final, que será travada entre os capitalistas cristãos, defensores do livre-mercado, e os comunistas ateus, defensores do sexo livre. O que dizer sobre tudo isso? Salve-se quem puder!

Sérgio Santos da Silva

sábado, 28 de maio de 2016

O equívoco da expressão "cultura do estupro"


Muitas vezes precisamos nos esforçar para não sermos mal compreendidos. É o que farei agora. Escrevi há pouco mais de 24 horas um texto, postado em minha timeline no Facebook, sobre o caso da adolescente estuprada por mais de 30 homens. Conforme disse lá, trata-se de um crime hediondo, um ato bárbaro e cruel, que chocou toda a sociedade brasileira. É claro: uma cultura que é indulgente ao assédio sexual praticado por homens já é em si uma violência contra a mulher, que tem no estupro sua expressão maior de crueldade e selvageria. Mas não concordo com a existência de uma “cultura do estupro”. O termo é equívoco e seu uso necessariamente provocará ruídos na comunicação. O uso da palavra cultura, de acordo com o dicionário Houaiss, está ligado às áreas da agricultura, biologia e antropologia. Obviamente, nesta discussão, interessa-nos as acepções ligadas a esta última área. Reproduzo-as abaixo:

“5. conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes etc. que distinguem um grupo social
6. forma ou etapa evolutiva das tradições e valores intelectuais, morais, espirituais (de um lugar ou período específico); civilização
Exs.: c. clássica
         c. muçulmana
7. complexo de atividades, instituições, padrões sociais ligados à criação e difusão das belas-artes, ciências humanas e afins
Ex.: um governo que privilegiou a c.

Bem, de acordo com a acepção sinalizada com o nº 5, não existe uma “cultura do estupro”. Não há no Brasil um grupo social que se distinga pelos comportamentos e crenças associados à denominada “cultura do estupro”. São muitos os homens que abordam a mulher de forma invasiva? Certamente que sim. São muitos os que a ela se dirigem com palavras e gestos sexistas e desrespeitosos? Mas é claro! São muitos os que ignoram a negativa da mulher e insistem em assediá-la, forçando mesmo a barra, por acreditarem que seu “não” faz parte do jogo da sedução? Não há dúvida. No entanto, o fato de muitos homens agirem assim não significa que os homens representem um grupo que se distinga dos outros por apresentarem essa “cultura”. Os indivíduos do sexo masculino são um grupo heterogêneo, e muitos, igualmente, não adotam os comportamentos aqui descritos. São muitos os homens religiosos, moralmente conservadores ou simplesmente respeitadores. Não fosse assim, seria quase impossível um relacionamento não conflituoso entre um homem e uma mulher do ponto de vista sexual. E há muitos relacionamentos assim. É evidente que a mulher está sempre em uma situação de vulnerabilidade, sujeita, indubitavelmente, a toda forma de assédio e violência, mas não porque o homem é culturalmente um agressor sexual, mas sim porque, a despeito de não existir uma cultura do estupro ou uma cultura que com ele contribua, existe esse tipo de agressor. Da mesma forma, não existe uma “cultura da corrupção”, mas existem, sim, os corruptos e os corruptores. Não é preciso haver uma “cultura da transgressão” para haver transgressores ou uma “cultura do crime” para haver criminosos.

Não comentarei as acepções 6 e 7 porque elas estão ligadas a noções muito maiores embutidas na palavra cultura. Não poderia existir, evidentemente, uma “cultura do estupro” da mesma forma que existe uma cultura clássica, por exemplo. Nem a palavra “cultura” na expressão “cultura do estupro” tem o mesmo sentido quando aparece em expressões como “Ministério da cultura”.

Mas existe alguma cultura ligada ao comportamento sexual do homem? Sim, claro. Em nossa sociedade, espera-se que seja o homem que aborde a mulher e não o contrário, ainda que hoje muitas mulheres se sintam à vontade para tomar a iniciativa. Entenda-se: não estou afirmando que é o homem que deve ter a iniciativa, como se se tratasse de uma regra. Em vez disso, estou dizendo que é o homem, na maioria das vezes, quem age assim. Nesse sentido, quando um homem aborda uma mulher, está em busca de romance ou apenas de sexo. E na busca pela realização de seu objetivo, usa das mais diversas estratégias, desde a sincera declaração de amor até o uso do expediente da mentira; desde a paciente conquista do primeiro beijo até à abordagem invasiva e desrespeitosa. Há de tudo. Pode-se dizer que certos comportamentos sejam morais e outros, imorais, mas não é possível afirmar que há aqui um padrão de comportamento masculino. Da mesma forma como existem homens que forçam a barra para ter uma relação sexual com a mulher, não são poucos os que esperam pacientemente seu consentimento ou recorrem a uma profissional do sexo, pagando para satisfazer suas necessidades.

Mas voltemos à questão do ruído na comunicação. A expressão “cultura do estupro” tem sido eficaz na comunicação do conteúdo pretendido? Creio que não, haja vista a imensa quantidade de textos postados no Facebook questionando seu uso, entendendo a expressão do modo como abordei em meu primeiro texto e abordo neste. Se o objetivo é condenar o discurso de quem aponta o comportamento da mulher como a causa do estupro, penso que seria mais eficaz se se falasse em discurso de culpabilização da mulher pelo estupro sofrido ou uma expressão equivalente. Sem dúvida, é um termo mais longo e menos interessante do ponto de vista do marketing de ideias, mas é, com certeza, mais honesto. Se o objetivo, contudo, é afirmar que existe efetivamente um padrão de comportamento masculino caracterizado pelo assédio sexual, tornando cada homem um estuprador em potencial, então a expressão “cultura do estupro” não é só equívoca, como também mentirosa, pelos motivos já explicados.

Em nossa cultura, o estupro sempre foi um crime execrado pela maioria absoluta da população. No passado, havia mesmo no Brasil a aplicação da pena de “capação” para o estuprador, e nas penitenciárias esse tipo de criminoso sempre foi tratado com bastante hostilidade, de regra sendo feito de “mulherzinha” pelos apenados. Ademais, o fato de tanta gente indignar-se com o caso da adolescente estuprada por trinta e três homens e manifestar sua revolta nas redes sociais por meio de textos eivados do mais sincero sentimento de solidariedade pela vítima e do justo furor pelo ato praticado só demonstram que não há razoabilidade no uso da expressão “cultura do estupro”. Insistir nisso é forçar a barra, é cometer, de certa forma, contra a língua e contra a realidade objetiva, um verdadeiro estupro.


Sérgio Santos da Silva 

sábado, 9 de abril de 2016

AMAR NÃO É PRECISO


Só existe uma forma de um relacionamento entre um homem e uma mulher dar certo: se tanto esta quanto aquele forem inteiros. O casamento entre duas metades, ao contrário, não tende a dar certo, pois se uma pessoa depende da outra para estar completa, é porque é a necessidade e não o amor o que sustenta a relação. E casamento cuja base não seja o amor não é casamento, mas apenas um contrato civil.

Já nos assegurava o poeta: o amor é dado de graça. Sim, o amor é gratuito. Amamos não porque precisamos do outro, mas apesar de não precisarmos dele. É isso que Cristo nos ensinou quando disse que devíamos amar o próximo. Verdadeiramente ama o próximo quem o ajuda não tendo necessidade de fazê-lo. O político, por exemplo, que oferece ajuda ao necessitado porque necessita dele, não age por amor, mas por interesse. O que ele vê não é uma pessoa, mas um potencial eleitor. Diferentemente, o bom samaritano de que fala a parábola não precisava estender sua mão a um desconhecido, mas, ao fazê-lo, revelou todo amor que sentia pela humanidade.

Tudo isso é só para dizer: eu amo a minha esposa porque não preciso dela. Ela me ama porque não precisa de mim. Por isso estamos casados há mais de uma década. Casados como um pacote de TV e internet. Tanto esta quanto aquela, sem dúvida, justificam-se por si mesmas. Mas é claro que é muito mais vantajoso ter as duas. Eu sou a TV, limitado a alguns canais de informação e entretenimento. Ela é a internet, um universo de múltiplas possibilidades, inclusive a de transformar a TV. Minha esposa me transformou.

Ao longo desses anos, desentendemo-nos algumas vezes. Cometemos erros, eu muito mais do que ela. O amor não é antípoda da dor. Ela já me abriu feridas. Eu já sangrei seu coração. Somos dois inteiros e, por isso, nem sempre estamos de acordo, nem sempre estamos em harmonia. Não somos como as metades da laranja de que fala uma conhecida canção. Somos duas laranjas, colhidas de diferentes laranjeiras. No entanto, justamente porque o amor existe, sobrevivemos a todos os reveses que nós mesmos provocamos. Justamente porque o amor existe, passado o temporal, constatamos que ninguém abandonou o navio, mesmo cada um podendo tocar seu barco sozinho. Justamente porque nos amamos, é que queremos estar juntos. E nos amamos porque somos inteiros, como café e leite. Ambos podem ser tomados sozinhos, mas quem pode negar que os dois juntos na mesma xícara tornam a refeição mais saborosa? Tomar essa refeição é usufruir a vida. O amor é o pingado.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Quando a gratidão é um problema


Comecemos com uma metáfora: você mora em um pequeno município e trafega todos os dias por um percurso não pavimentado ao longo do qual seu carro atola, você sofre com a poeira levantada por outros veículos e, nos dias de chuva, formam-se inúmeras poças pelo caminho que lhe obrigam a movimentar-se em zigue-zague, mas para você é vital passar por ali. Apesar das reclamações, protestos, reportagens e abaixo-assinados feitos por moradores dessa região, os anos vão passando, os prefeitos vão se sucedendo e o problema não é resolvido. Um representante dos motoristas, o mais inflamado, acusa cada um desses prefeitos de nada fazerem por desviarem recursos destinados à pavimentação. Esse representante, tendo ficado conhecido por sua atuação política, consegue eleger-se ao executivo municipal e logo providencia a pavimentação do citado percurso. É um importante avanço, não acha?

Mas continuemos: passado algum tempo, devido à ação das chuvas, o asfalto começa a ceder, começam a se abrir buracos em todo o trecho da rodovia. Mesmo ciente do problema, o novo prefeito não age para resolvê-lo. Alguns motoristas reclamam, e começam a surgir críticas à sua gestão. Você então resolve defendê-lo. Afinal, ele foi o único que atendeu a uma reivindicação antiga dos moradores da região. Mas vêm à tona indícios de que o antigo representante dos motoristas desviava recursos destinados à manutenção e recuperação de rodovias. Enquanto isso, o asfalto vai ficando mais esburacado a cada dia. As críticas e acusações ao prefeito se intensificam a ponto de alguns pedirem sua renúncia. E o que você faz diante disso? Continua defendendo o prefeito. Claro, todos os prefeitos que já passaram desviaram recursos e por que não se pediu a renúncia destes também? Além disso, era muito mais difícil fazer o percurso no passado. É sério que esse raciocínio parece razoável para você?

No meu entender, quando pensamos assim já nos entregamos à acomodação política e aderimos ao pensamento de torcida. Não nego que é natural sentir gratidão quando somos beneficiados por algo, mas, se nos deixamos dominar por tal sentimento, estagnamos onde nos encontramos e – pior! – passamos a aceitar pequenos retrocessos, desde que nossa situação ainda seja melhor do que a do passado ao qual tememos voltar. É isso que está acontecendo agora no Brasil.

Outro ponto importante: se somos gratos ao que um governo fez (ou ainda faz), tendo ou não consciência disso, estamos criando as condições para a sua perpetuação no poder. No século XV Maquiavel já previa isso. Faz bastante tempo que li O Príncipe, mas ainda lembro de algumas passagens bem interessantes, e, principalmente, dos comentários de Napoleão Bonaparte. Alguém, no entanto, poderá me objetar: por que devemos nos preocupar com a perpetuação no poder de um partido como o PT, uma vez que tantos avanços sociais trouxe para o Brasil? Pode até parecer que faz sentido o discurso de que “não se mexe em time que está ganhando”, mas o grande problema de quem permanece muito tempo no poder é achar que exercer o poder é naturalmente um direito seu e não o resultado de uma contingência histórica. Ao sentir-se o dono da cadeira, o governante passa a agir como se não devesse nada a ninguém, como se nunca antes na história tivesse sido outra coisa senão governante. Nesse sentido, assemelha-se a um monarca, uma vez que busca ter tudo sob seu controle, para atender aos seus próprios interesses, sem, contudo, se submeter ao controle de ninguém. Toda vez que defendemos o governo das acusações que a ele são feitas com o discurso da gratidão estamos legitimando isso. Além do mais, esse discurso nos faz enxergar apenas os avanços, impedindo-nos de enxergar qualquer retrocesso. 

Infelizmente, é isso que acontece: muitos se esmeraram em defender este governo com o discurso da gratidão. É como se a concessão de benefícios na área social significasse salvo-conduto para o governante agir como bem quiser. Não vou entrar na discussão do mérito dos programas sociais lançados ou aprofundados nos governos Lula-Dilma, mas Prouni, Pronatec, Minha casa minha vida, Bolsa-Família, etc., ainda que representem importantes ações no combate às desigualdades sociais, não podem ser evocados, por exemplo, como defesa contra uma acusação de corrupção. Só é possível defender um acusado alegando ausência de provas para incriminá-lo ou apresentando provas de sua inocência. É evidente que as virtudes de uma pessoa não impede seus defeitos e que a prática de boas ações não salvaguarda ninguém de, na mesma medida, praticar crimes.

Ademais, defendo que é dever de todo cidadão mostrar-se sempre insatisfeito com o governo, seja ele qual for. Em outras palavras, nenhum governo em exercício deve ser defendido. Em vez disso, deve ser duramente criticado e cobrado, ainda que seja o melhor governo que já conhecemos. No terreno da Política, a ingratidão é a única arma do povo.