Quem pôde assistir à Copa de 1986, realizada no México, (eu, com apenas 7 anos, ainda não me interessava por futebol) deve lembrar-se da partida entre Argentina e Inglaterra pelas quartas-de-final, quando o, na época, craque argentino Diego Maradona abriu o placar favorável aos nossos hermanos da América do Sul marcando um discutível gol, com o punho cerrado, gol esse que entrou para a história como La Mano de Dios. Deve lembrar-se também dos protestos dos ingleses e da declaração do capitão argentino após o jogo, a qual deu origem ao nome do gol: “Se houve mão na bola, foi a mão de Deus”. A lembrança deve ser bastante vívida sobretudo para quem é aficionado por futebol e teve a oportunidade de ver Maradona, na mesma partida, fazer o gol considerado o mais bonito da história das copas: de costas para o campo de defesa inglês, ele recebe a bola, em seguida passa por três adversários, dribla o goleiro e chuta em direção às redes. Aos que não puderam assistir à transmissão ao vivo dessa partida resta o consolo de poder ver alguns vídeos que circulam no Youtube. É o meu caso. Não há dúvidas de que Maradona estava inspirado nesse dia, como se sentisse nas narinas o fôlego divino e não o proibido pó que o expulsaria dos gramados, conduzindo-o aos seus infernos. Maradona estava iluminado.
Esse
evento revela um fato curioso: a religiosidade ou, ao menos, a linguagem
religiosa perpassa o futebol. Para os argentinos, de fato as mãos de Maradona
foram, naquela Copa, as mãos de Deus. O brasileiro Romário, que brilhou na Copa
da Itália fazendo dobradinha com Bebeto, se não teve igualmente suas mãos
convertidas nas mãos de Deus, também foi, enquanto jogador, um homem iluminado.
O Baixinho foi, na verdade, um caso de predestinação, o que ele deixou
claro no discurso proferido ao ser apresentado como novo reforço do Fluminense,
em 2002: “Quando eu nasci, Deus apontou o dedo em minha direção e disse: esse é
o cara”. Talvez isso explique o sucesso da campanha brasileira em 1994. Ser
chamado por Deus de “o cara” no momento do nascimento é muito melhor do que ser
assim chamado por Barack Obama aos 64 anos. Nisso reside toda a vantagem de
Romário em relação ao nosso ex-presidente da República.
Podemos dizer que houve outros “caras” no futebol brasileiro. Ademir da Guia, o maior ídolo da história do Palmeiras, foi um deles. Não foi eleito por Deus por ocasião do nascimento nem recebeu a divina convocação na idade adulta, no entanto, devido à classe com que jogava, ganhou entre nós, meros mortais, o apelido de “Divino”. Até mesmo jogadores de times rivais reconheciam seu encanto irresistível. O ex-jogador corintiano Sócrates, por exemplo, chegou a denunciar, no prefácio do livro Divino - A vida e a arte de Ademir da Guia, do escritor Kléber Mazziero de Souza, a injustiça que se cometeu contra o craque palmeirense: “O futebol nos ofereceu em sua trajetória um grande bailarino, Ademir da Guia: a colocação impecável, a fronte eternamente erguida, a calma irritante, o passe perfeito, a simplicidade dos gestos, o alcance dos passos, a lentidão veloz e o raciocínio implacável ficaram definitivamente em nossa memória. [...] Passeava pelos gramados como um cisne, encantando a todos. Infelizmente, esse arsenal de qualidades nunca foi usado pela seleção brasileira, que, através de seus representantes, não atendia o clamor popular pela sua convocação [...] Injustiça!”. Ademir acabou por jogar apenas uma partida pela Seleção Brasileira, na Copa de 1974, quando o Brasil já havia sido desclassificado. Houvesse sido aproveitado antes, quem sabe se a história não seria outra... Quem sabe se Deus...
Sim, há uma máxima no Brasil que diz que Deus é brasileiro. Recentemente, até mesmo o Papa Francisco confirmou a verdade do adágio, ao afirmar, em visita ao Brasil no ano passado, que “o papa é argentino porque Deus é brasileiro”. Mas é aqui que começa o pandemônio. Se o papa é o representante de Deus na Terra e Deus é brasileiro, como explicar que a partida entre o San Lorenzo e o Botafogo pela Libertadores da América não tenha terminado empatado? Essa é a grande questão. O coração do Altíssimo não ficaria, assim, dividido entre o time eleito por seu procurador e o time do país que lhe concedeu a cidadania? Outro caso: o técnico Felipão, católico praticante, fez promessas para ganhar a Copa de 2002. É de conhecimento geral que suas orações foram atendidas e ganhamos o pentacampeonato naquele ano. O que fez Felipão? Andou 18 quilômetros de Goiânia até Trindade para agradecer aos céus a conquista. Mas, pergunto-me, quantos Felipãos não há pelo mundo, fazendo orações e promessas para ganhar uma partida de futebol ou um campeonato? Poderia Deus atender a todos ou ele já reservou a vitória aos times escolhidos por Ele desde a fundação do mundo? Mesut Ozil, muçulmano e jogador do Arsenal, da Inglaterra, recita trechos do Alcorão e reza antes de entrar em campo. Poderia Alá ajudá-lo nessa hora? A disputa poderia ser posta, assim, entre os deuses cristão e muçulmano, como as antigas disputas entre as divindades olímpicas? Ou seria entre os profetas de Deus e os de Baal?
Fio Maravilha, Dadá Maravilha, Ronaldo, o Fenômeno, Rivaldo, o Fabuloso – os epítetos pelos quais esses jogadores são conhecidos evidenciam o quanto a arte de dominar uma bola é percebida como algo insólito, sobrenatural até. Diante disso, o futebol figura como uma espécie de religião, com seus rituais, seus milagres e suas promessas de felicidade futura. Claro, também com seus fanáticos. Pessoas dispostas a morrer e a matar em nome da vitória em uma final. Para alguns, o futebol é a própria vida, o sentido único da existência. Outros, mais moderados, esperam pelo auxílio divino em momentos de crise (quando ameaçados de rebaixamento, por exemplo), mas, dispostos à resignação, desejam que a vontade de Deus prevaleça sobre a sua. São muitos os assim chamados atletas de Cristo, jogadores que lutam por um troféu a cada torneio e por uma única coroa, a da vida, entregue no juízo final.
Talvez você, caro leitor, proteste diante de tudo isso. Deus não se mistura com futebol. Não mesmo? Tenho cá minhas dúvidas. Sim, o universo é imenso para que o Criador dos céus e da Terra se ocupe com interferir na decisão de um título. Mas eu não quero me colocar aqui como quem conhece os desígnios de Deus. Longe de mim essa pretensão. De qualquer forma, está nos Evangelhos que a fé remove montanhas. Independentemente de eu crer ou não nas Escrituras, penso que, se cada jogador brasileiro entrar nesta Copa do Mundo fortalecido pela fé em Deus e confiante na vitória, ainda que esta não ocorra, lutará com bastante empenho até os minutos de acréscimo do segundo tempo, sem entregar os pontos, na esperança de que no segundo final surja, como milagre, a oportunidade de um gol salvador.
Sérgio Santos da Silva
*Ensaio publicado na revista digital Kukukaya, disponível aqui.
Podemos dizer que houve outros “caras” no futebol brasileiro. Ademir da Guia, o maior ídolo da história do Palmeiras, foi um deles. Não foi eleito por Deus por ocasião do nascimento nem recebeu a divina convocação na idade adulta, no entanto, devido à classe com que jogava, ganhou entre nós, meros mortais, o apelido de “Divino”. Até mesmo jogadores de times rivais reconheciam seu encanto irresistível. O ex-jogador corintiano Sócrates, por exemplo, chegou a denunciar, no prefácio do livro Divino - A vida e a arte de Ademir da Guia, do escritor Kléber Mazziero de Souza, a injustiça que se cometeu contra o craque palmeirense: “O futebol nos ofereceu em sua trajetória um grande bailarino, Ademir da Guia: a colocação impecável, a fronte eternamente erguida, a calma irritante, o passe perfeito, a simplicidade dos gestos, o alcance dos passos, a lentidão veloz e o raciocínio implacável ficaram definitivamente em nossa memória. [...] Passeava pelos gramados como um cisne, encantando a todos. Infelizmente, esse arsenal de qualidades nunca foi usado pela seleção brasileira, que, através de seus representantes, não atendia o clamor popular pela sua convocação [...] Injustiça!”. Ademir acabou por jogar apenas uma partida pela Seleção Brasileira, na Copa de 1974, quando o Brasil já havia sido desclassificado. Houvesse sido aproveitado antes, quem sabe se a história não seria outra... Quem sabe se Deus...
Sim, há uma máxima no Brasil que diz que Deus é brasileiro. Recentemente, até mesmo o Papa Francisco confirmou a verdade do adágio, ao afirmar, em visita ao Brasil no ano passado, que “o papa é argentino porque Deus é brasileiro”. Mas é aqui que começa o pandemônio. Se o papa é o representante de Deus na Terra e Deus é brasileiro, como explicar que a partida entre o San Lorenzo e o Botafogo pela Libertadores da América não tenha terminado empatado? Essa é a grande questão. O coração do Altíssimo não ficaria, assim, dividido entre o time eleito por seu procurador e o time do país que lhe concedeu a cidadania? Outro caso: o técnico Felipão, católico praticante, fez promessas para ganhar a Copa de 2002. É de conhecimento geral que suas orações foram atendidas e ganhamos o pentacampeonato naquele ano. O que fez Felipão? Andou 18 quilômetros de Goiânia até Trindade para agradecer aos céus a conquista. Mas, pergunto-me, quantos Felipãos não há pelo mundo, fazendo orações e promessas para ganhar uma partida de futebol ou um campeonato? Poderia Deus atender a todos ou ele já reservou a vitória aos times escolhidos por Ele desde a fundação do mundo? Mesut Ozil, muçulmano e jogador do Arsenal, da Inglaterra, recita trechos do Alcorão e reza antes de entrar em campo. Poderia Alá ajudá-lo nessa hora? A disputa poderia ser posta, assim, entre os deuses cristão e muçulmano, como as antigas disputas entre as divindades olímpicas? Ou seria entre os profetas de Deus e os de Baal?
Fio Maravilha, Dadá Maravilha, Ronaldo, o Fenômeno, Rivaldo, o Fabuloso – os epítetos pelos quais esses jogadores são conhecidos evidenciam o quanto a arte de dominar uma bola é percebida como algo insólito, sobrenatural até. Diante disso, o futebol figura como uma espécie de religião, com seus rituais, seus milagres e suas promessas de felicidade futura. Claro, também com seus fanáticos. Pessoas dispostas a morrer e a matar em nome da vitória em uma final. Para alguns, o futebol é a própria vida, o sentido único da existência. Outros, mais moderados, esperam pelo auxílio divino em momentos de crise (quando ameaçados de rebaixamento, por exemplo), mas, dispostos à resignação, desejam que a vontade de Deus prevaleça sobre a sua. São muitos os assim chamados atletas de Cristo, jogadores que lutam por um troféu a cada torneio e por uma única coroa, a da vida, entregue no juízo final.
Talvez você, caro leitor, proteste diante de tudo isso. Deus não se mistura com futebol. Não mesmo? Tenho cá minhas dúvidas. Sim, o universo é imenso para que o Criador dos céus e da Terra se ocupe com interferir na decisão de um título. Mas eu não quero me colocar aqui como quem conhece os desígnios de Deus. Longe de mim essa pretensão. De qualquer forma, está nos Evangelhos que a fé remove montanhas. Independentemente de eu crer ou não nas Escrituras, penso que, se cada jogador brasileiro entrar nesta Copa do Mundo fortalecido pela fé em Deus e confiante na vitória, ainda que esta não ocorra, lutará com bastante empenho até os minutos de acréscimo do segundo tempo, sem entregar os pontos, na esperança de que no segundo final surja, como milagre, a oportunidade de um gol salvador.
Sérgio Santos da Silva
*Ensaio publicado na revista digital Kukukaya, disponível aqui.