Seria a religião um mal necessário? Há alguns dias ouvi um colega de trabalho sustentando tal opinião. Somos ambos professores: eu, um ateu recém convencido do equívoco do ateísmo e um entusiasmado defensor de um conhecimento possível e verdadeiro; ele, um cristão evangélico adepto do relativismo moral e epistemológico. Ou seja, enquanto defendo a radicalidade de uma concepção de verdade e de moral, ele, em vez de defender a legitimidade da pretensão do Cristianismo à verdade e a atualidade da moral cristã, apenas vislumbra um mundo caótico caso o ser humano chegue à conclusão de que suas crenças não passam de meras ilusões. Nesse caso, não importa o conteúdo religioso, mas os resultados alcançados. A religião, assim, converte-se tão-somente em um freio, uma forma de conter os excessos de indivíduos naturalmente egoístas, tanto mais se cônscios de serem plenamente “donos de si”. Sem as amarras morais da religião – raciocina meu colega –, o indivíduo se sente livre para entregar-se a toda sorte de vício, agindo apenas em benefício próprio, em busca da fruição do maior prazer possível, sobretudo em vista de sua existência efêmera e sem esperança. A consequência disso seria a volta ao estado de natureza, não aquele pensado por Rousseau, mas o concebido por Hobbes. Seria o estabelecimento do reino do egoísmo, no qual prevalece sempre a “moral” do mais forte. Esse é um ponto importante do seu raciocínio. Outro é a ideia de que desvencilhar-se das verdades religiosas poderia levar alguns a assumirem uma postura negativa diante da vida, o que, por sua vez, fatalmente poderia conduzir à depressão ou ao suicídio. A religião seria, assim, um alento, e, por conferir significado à existência humana, um elemento motivador da vida. Seriam as ditas muletas que possibilitam a caminhada dos débeis homens. Freio ou muleta, eis os denominadores comuns das religiões, segundo meu colega, e de acordo com o senso comum. Desse modo, a falta de religião ou catapulta o indivíduo para assumir-se como um imoral protagonista de sua vida, não devendo prestar contas de nada a ninguém, ou lança-o no mais fundo dos abismos do niilismo e da miséria humana.
Não, caro leitor, não
creio que meu colega tenha razão: a religião não é um mal necessário. Afirmá-lo
implicaria conceber um conceito de mal com o qual a religião possa ter alguma
relação. Implicaria também a assunção da ideia de que, em dados contextos, certo
grau de maldade pode ser necessário. Confesso que hoje não consigo refletir
sobre essas implicações sem enxergar muitas incongruências e contradições.
Vejamos algumas.
Incongruência nº 1: suponhamos
que eu aceite que não existe algo a que se possa chamar de verdade, muito menos
de “a” Verdade, com “V” maiúsculo, conforme afirma Nietzsche, entre outros
autores pós-modernos. Isso minaria as pretensões da religião de descrever, além
da interioridade do homem, a realidade externa a ele. Se assim é, por que eu, tendo
compreendido tal verdade, isto é, que
nada podemos saber com certeza, submeto-me ao discurso mistificador da religião?
Tendo tal consciência, como poderia professar uma fé que sei, de antemão, que
se baseia em ilusões? Se a religião é um freio, e o ser humano precisa de
alguma forma de contenção, então é possível concluirmos que se está defendendo
que a ignorância, sim, é um mal necessário. Mas se eu defendo a necessidade do
mal da religião eu não sou um ignorante. Portanto, não posso coerentemente ser
um cristão e ao mesmo tempo assumir a impossibilidade do conhecimento.
Incongruência nº 2: suponhamos
mais uma vez que Nietzsche tenha razão, agora em sua crítica demolidora à moral
ocidental e cristã. Uma vez que eu entenda que qualquer alicerce sobre o qual
se possa construir alguma noção de moralidade foi removido, como posso assumir
que a religião é um mal? O que significa dizer isso? Seria conceber que há algo
a que se possa chamar de mal, mas isso contradiz o discurso do relativismo
moral. Segundo essa perspectiva, não existe mal, mas apenas o mal em relação a
uma dada cultura, a um dado tempo, e – pior! – a uma dada pessoa. Ora, se
assumo o subjetivismo ético quando afirmo que a religião é um mal, apenas estou
expressando uma opinião ou uma preferência, nunca uma descrição objetiva da
realidade. Portanto, a religião não é um mal.
Incongruência nº 3:
se entendo que a moral consiste em uma criação humana e contingente, como posso
defender a necessidade de um mal? A afirmação de que a religião é um mal
necessário implica a ideia de que é necessário em vista de um bem maior. Se
você está doente, submeter-se à dor de uma injeção pode ser entendido como um
mal necessário em vista do bem maior de ficar curado. Mas de onde nascem as
afirmações axiológicas do homem pós-moderno? O que significa efetivamente bem
e, em especial, bem maior? Por que um mundo sem egoísmo e com esperança é um
bem maior do que um mundo com pessoas egocêntricas e pessimistas? Por que
deveríamos preferir uma coisa à outra? A resposta pode parecer evidente para o
distinto leitor, mas presumo que isso se dá porque não assume até as últimas
consequências as implicações filosóficas do subjetivismo ético.
Incongruência nº 4:
ouço com frequência a associação entre religião e fanatismo. Meu colega se
apressa em afirmar que é religioso, mas não fanático, o que significa que ele não
se vê como “dono da verdade”, estando aberto a considerar a validade de outras
perspectivas. Receio que haja aqui um equívoco. Compreende-se que quem defende
qualquer coisa como objetivamente verdadeiro é um fanático, incapaz de dialogar
com quem quer que seja. É isso que pensa o professor e, na esteira dessa
compreensão, cita Voltaire: “Posso não concordar com nada do que dizes, mas
defenderei até à morte o direito de dizê-lo”. Acontece que o filósofo francês
acreditava na verdade de seu discurso a favor da tolerância! E o que ele diz
efetivamente? Que está disposto a ouvir, a respeitar, a tolerar quem pensa
diferente dele, no entanto ele não se mostra igualmente disposto a abrir mão de
suas convicções! Vivendo sob a atmosfera do Iluminismo e sendo, sobretudo,
influenciado pelo empirismo de John Locke, Voltaire acreditava na possibilidade
de um conhecimento científico e inequívoco. Ele nunca foi um relativista, haja
vista estar circunscrito no momento que marcou o início da modernidade, com sua
crença na inevitabilidade do progresso científico e moral do ser humano.
Eu poderia apontar
outras inconsistências, mas creio que essas aqui expostas já deixam claro que defender
que a religião é um mal necessário implica envolver-se em grandes dificuldades.
Quanto a mim, penso que a religião é, sim, necessária, mas necessária do ponto
de vista lógico. Ou seja, sendo o homem um ser, ainda mais um ser moral, infiro
que Deus existe necessariamente e, assumindo a verdade da existência de Deus,
entendo também que a religião inevitavelmente se insere na história humana
sobre este planeta. Não existe cultura humana no passado ou no presente sem
religião. Portanto, a religião é necessária sim, mas nunca um mal. E não há
dúvidas: o meu colega está completamente enganado.
Sérgio Santos da Silva
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*Ensaio originalmente publicado na revista virtual Kukukaya, disponível aqui.